domingo, março 22, 2009

A Menina de Ouro (II)


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Em 27 de Julho de 2008, a propósito dos acontecimentos verificados no Bairro da Quinta da Fonte (Loures), escrevi o texto "Racismo e anti-racismo" em http://www.rostos.pt/.
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Retomo-o agora, numa semana em que Margarida Moreira - "a senhora DREN" (Visão de 19 de Março de 2009) - mancha, desfigura e maltrata, uma vez mais (e cito Henrique Raposo), toda e qualquer "doutrina multiculturalista".
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Racismo e anti-racismo
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“Certas formas de anti-racismo são racistas”
Luís Campos e Cunha (Público, 25 de Julho de 2008)
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Os rom (plural: roma), vulgarmente conhecidos como ciganos, são originários do norte da Índia – regiões do Punjab e do Rajastão – e tiveram os primeiros movimentos migratórios no século X.
Têm uma presença secular na Europa. Em 1427, no decurso da chamada “primeira grande diáspora” efectivou-se uma das chegadas de ciganos melhor documentadas, conservada na obra Temoignageun bourgeois de Paris”. Em 12 de Agosto desse ano chegaram a Paris, onde causaram grande fascínio pelo seu aspecto “miserável e estranho”, e o povo acudiu em massa para vê-los adivinhar o futuro. Viviam da magia e dos pequenos roubos até que o bispo expulsou-os em Setembro desse mesmo ano e partiram em direcção a Pontoise. Segundo Helena Sánchez Ortega (La diferencia Inquietante, ed. Siglo XXI, Madrid, 1997) essa crónica exemplifica o quadro de tipificação negativa dos ciganos que se manterá até os nossos dias.
Em Portugal “esta presença, alimentada por movimentos migratórios intensos a partir da Estremadura espanhola, sobretudo entre os séculos XIV e XVI, ficou marcada desde cedo por uma discriminação severa, consagrada na ordem jurídica interna – castigos, degredo, expulsão, condenação à morte, interdição de residência – em sucessivas disposições (que culminam processos explícitos de iniquidade social), e que cedo extravasou para uma representação colectiva (que resume um processo oculto de exclusão) que se poderia definir como defensiva, relativamente a este povo de origem indo-asiática. Os exemplos de discriminação jurídica abundam desses tempos imemoriais até aos nossos dias, como no caso dos regulamentos policiais, não obstante terem sido declarados inconstitucionais (“A etnia cigana em Portugal”, Paulo Machado, revista JANUS 2001).
O século XX foi um tempo de perseguição e extermínio, com políticas de assimilação e restrições da liberdade cultural nos países comunistas do leste europeu e de genocídio perpetrado pelos nazis – só em Auschwitz/Birkenau morreram mais de vinte mil ciganos (adaptado de Wikipedia – História do povo cigano).
Conheci o Pedro [nome fictício] na Consulta de Nefrologia Pediátrica do Hospital Garcia de Orta em Agosto de 1994. Tinha então 15 anos. Baleado numa rixa entre ciganos ficara paraplégico e a sua bexiga neurogénica era suficientemente preocupante quanto ao futuro da função renal. Acompanhei-o clinicamente até 2002, muito para além do limite etário da minha consulta. Construímos uma amizade. No final de cada consulta reservávamos alguns minutos para falar da vida – das nossas vidas. Explicou-me as discriminações de género entre os ciganos, o papel subalterno e dependente da cigana, os problemas e as consequências do nomadismo, o acesso limitado à escola, a violência intra e inter-étnica. O Pedro foi um lutador – é um lutador. Revoltado e inconformado com o seu destino físico. Mas empenhado e comprometido na busca de um futuro mais feliz. Fez um curso técnico. Tem uma profissão e um emprego. Sempre me disse que os jovens ciganos são pouco estimulados a frequentar os diversos patamares do ensino obrigatório e, no caso das raparigas, estas são mesmo demovidas de o fazerem.
Como se pode constatar no sítio http://www.cet.iscte.pt/
do Centro de Estudos Territoriais do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), coordenado por Vítor Matias Ferreira e Alexandra Castro, a juventude de etnia cigana é, entre todas as minorias residentes em Portugal, a que tem menor taxa de frequência escolar. Ainda assim, os números são hoje bem mais animadores que há algumas décadas e vêm revelando uma evolução progressivamente positiva. Poderão ter contribuído para este facto a tendência para um maior sedentarismo dos ciganos resultante da implementação do Plano Especial de Realojamento (PER) – sobretudo nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto – e a imposição decorrente do acesso ao Rendimento Social de Inserção (RSI) que, como anunciava a edição de ontem do Expresso, contempla 60 a 70% dos ciganos – o que corresponde a cerca de 10% do total dos beneficiários do RSI.
Contam-se pelos dedos de duas mãos os ciganos com formação académica de nível superior.
Acredito que o incremento significativo desse número, e a conclusão do ensino secundário por muitos outros, seguida de cursos técnicos profissionalizantes, possam vir a ter um papel importante a nível das comunidades ciganas. Pelo conhecimento, pela modernidade e pela tolerância que previsivelmente introduzirão nos círculos iletrados, clássicos e agressivos de onde são originários. Poderão constituir-se como factores de mudança e de inclusão – em colaboração com Governos, Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural, Autarquias, Igrejas, Associações.
A gravidade dos acontecimentos de Cervães, Francelos e Vila Verde (anos de 1996 e 1997) e mais recentemente no Bairro da Quinta da Fonte (Loures) testemunha os antagonismos sociais que os ciganos suscitam, ainda hoje, em muitas comunidades e o longo e difícil caminho que importa percorrer.
O Estado – Administração Central e Local – não se pode eximir do cumprimento das suas responsabilidades e da assumpção plena da sua autoridade. Como escreveu Fernando Madrinha “a lógica desculpabilizadora e paternalista que tem feito escola entre nós é perniciosa pelos efeitos inibidores que acaba por ter nos governos e nas forças de segurança.
O que se exige destes é que garantam a segurança dos cidadãos e façam cumprir a lei onde e por quem quer que ela seja infringida. E que não usem de especial dureza, nem de especial complacência porque os transgressores são brancos, pretos, ciganos ou de qualquer outra etnia (“Aos tiros no bairro”, Expresso de 19 de Julho de 2008).
Por outro lado, a etnia cigana terá de, finalmente, entender que além dos direitos constitucionais – que tantas vezes invoca de forma violenta –, tem deveres inalienáveis por cumprir. Ou seja, deve respeitar e exercer regras civilizacionais básicas do Estado de Direito Democrático – respeito integral das leis, pagamento de impostos, cumprimento de rendas ou prestações de habitação, escolarização dos jovens, etc. E, já agora, abdicar da chaga em que se deixou vincular e ajudou a fazer crescer – o tráfico de droga e de armas.

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Ontem, no Expresso, Henrique Raposo escreveu: "O racismo, meus caros, não é monopólio do homem branco. O cigano também é racista... Mas, atenção, os ciganos têm direito a este racismo. Os ciganos têm direito a ver à margem da sociedade... Ao nível pré-político, cada um faz o que quer. Porém, ao nível político, o Estado português não pode legitimar esta segregação cultural. Um Estado de Direito não pode aceitar e financiar a formação de guetos. As pessoas não são bichos para ficarem presas em contentores pedagógicos..."
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Não se espera que Margarida Moreira mude.
Mas deseja-se que muitos portugueses - brancos, negros, mestiços, amarelos, ciganos, ou quaisquer outros - sejam capazes de reflectir sobre Democracia, Educação, Igualdade, Discriminação, Racismo.
Para que sejam (sejamos) capazes de incorporar e desenvolver novos conceitos e outras práticas de convivência e de aprendizagem mútua.
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