sexta-feira, dezembro 19, 2008

Memória Barreirense (XXXIII)



A Democracia é a pior forma de governo,
exceptuando-se todas as outras

Winston Churchill


9 de Julho de 1975

Fui o 117º dos 181 associados que, nessa noite, assinaram o livro de presenças. Realizava-se mais uma Assembleia-Geral do FCB.
Como escreveu Daniel Sampaio (A Cinza do Tempo, Editorial Caminho 1997) “Aos 16 anos já se é grande para muita coisa. Se tudo correu bem, já se ‘curtiu’ ou se ‘andou’ mesmo com alguém. A guerra com os pais ainda está forte, mas muitas vezes já não é tão vital. Já se saiu à noite e aquela magia tão ansiosamente aguardada já não é tão brilhante”.
Então com 18 anos, tinha adquirido a maioridade e uma maior consciência dos meus direitos e deveres associativos. Estávamos em pleno Verão Quente [período explosivo da política portuguesa entre 11 de Março e 25 de Novembro de 1975], assim resumido por Henrique Monteiro e José Manuel Fernandes em nota introdutória ao livro Os dias loucos do PREC de Adelino Gomes e José Pedro Castanheira (edição conjunta dos jornais Expresso e Público, 2006):

(…) os “meses da brasa” em que Portugal esteve à beira da guerra civil, entre a liberdade e um novo totalitarismo, foi – visto hoje, e já com a distância de olhar que apenas o passar dos anos confere à História – um dos períodos mais ricos do nosso passado comum. Nele debateram-se sonhos e realidades, boas e más intenções, esperanças e desencantos. O seu desfecho resultou no Portugal que conhecemos, com todos os seus defeitos e virtudes, mas acima de tudo um país livre. País que devemos aos protagonistas da época, às vezes por razões contraditórias, mas quase sempre porque se tratava de um tempo em que todos os riscos se corriam e todas as soluções pareciam possíveis.

A proliferação de uma miríade de conflitos laborais (com a ocupação de fábricas e latifúndios), a polémica acerca da Unicidade Sindical, o boicote a Mário Soares e ao Partido Socialista nas celebrações do 1º Maio, os conflitos da Rádio Renascença e do República, constituíram alguns dos focos de enorme tensão que vieram agudizar perigosamente a situação política e fazer perigar a nossa jovem Democracia.
A esquerdização global da vida portuguesa envolveu os partidos políticos, os militares, os deputados à Assembleia Constituinte e, de uma maneira geral, quase toda a sociedade portuguesa. Os ventos de mudança também se fizeram sentir nos clubes desportivos e muitas das contradições e combates político-ideológicos foram igualmente transpostos para o seu seio. Na Assembleia-Geral de 9 de Julho, para além de uma proposta recusada de aumento de quotas e da eleição de novos Órgãos Sociais, a Ordem de Trabalhos incluía a discussão e votação da extinção dos lugares cativos do Campo D. Manuel de Mello, “considerados elitistas e pouco de acordo com uma sociedade sem classes”.
Dez dias depois, a Fonte Luminosa em Lisboa foi palco de um gigantesco comício do Partido Socialista, apoiado por todas as forças políticas à sua direita. E o prenúncio, confirmado a 25 de Novembro, de que os portugueses que não se reviam em novas utopias totalitárias podiam garantir, em sinergia com importantes sectores democráticos do Movimento das Forças Armadas, a prossecução, em Liberdade, dos três grandes objectivos do Movimento dos Capitães: Descolonizar, Democratizar e Desenvolver.
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Turbulência

António Manuel Ribeiro, Presidente da Assembleia-Geral do FCB (Presidente de Direcção: José Tiago Rodrigues), convocara para 9 de Abril de 1976 uma Assembleia-Geral Ordinária.
Uma semana antes, a 2 de Abril, a Constituição da República Portuguesa fora aprovada apenas com o voto contrário dos deputados do Centro Democrático Social.

A Constituição de 1976 foi profundamente marcada pelas transformações revolucionárias ocorridas desde 1974 em Portugal. A “transição para o socialismo”, as nacionalizações e o seu carácter irreversível definido pelos limites materiais impostos a futuras revisões, as estruturas populares de base, o Serviço Nacional de Saúde, o carácter gratuito do ensino nos seus vários graus e ramos, a reforma agrária eram, a par do sistema semi-presidencialista e da dupla responsabilidade política do Governo (perante os deputados e perante o Presidente da República) e do sistema proporcional para a transformação dos votos em mandatos, os traços mais característicos de uma Constituição saída de um processo muito turbulento e expressão constitucional da complexidade e das contradições do Portugal revolucionário de 1974 e 1975.
(César Oliveira, Os Anos Decisivos, Editorial Presença, 1993)

A Assembleia-Geral destinou-se a “Apreciar, discutir e votar o Relatório e Contas da gerência de 1975 e respectivo parecer do Conselho Consultivo e Contas. Eleição dos Corpos Gerentes para a gerência de 1976”.
Compareceram 182 associados, numa sessão marcada pela intervenção de Carlos Carvalho, militante do PCP e antigo atleta de basquetebol do clube. O orador, à data membro do denominado Núcleo Desportivo e Cultural do FCB, apresentou uma proposta, cujo teor se transcreve:

Proposta
Considerandos:
- considerando que os Estatutos e Regulamento Geral do FCB foram elaborados em pleno período fascista e por servidores desse regime
- considerando que por esse motivo eles estão completamente ultrapassados neste momento nem defendem os interesses dos sócios do clube
- considerando que a estrutura do clube é arcaica e não funciona bem
- considerando que o clube tem de servir a educação e cultura dos seus sócios através da prática desportiva e cultural
- considerando que o clube deve participar, como aliás tem participado desde a existência do Núcleo, nas acções mais importantes que visem a construção de um desporto novo neste País, propomos:
Formação de Comissão (elementos do Núcleo, da direcção e outros), para:
- estudo e elaboração de um projecto de alteração dos Estatutos e Regimento Geral do Clube de acordo com os interesses dos sócios, do Clube, e dentro do espírito do desporto ao serviço de todos os sócios
- elaboração de um programa de actividades do clube por um período de um ou dois anos dentro da óptica do desporto Direito do Povo
- proposta de nova direcção, já regendo-se pelos novos estatutos e Regulamento Geral e pelo programa apresentado.


Apesar de estatutariamente irregular, a proposta foi admitida para discussão e mais tarde sufragada, com 35 votos favoráveis, 14 votos negativos e 14 abstenções. A comissão entretanto constituída teria dois meses para concretizar a proposta. E a Direcção continuaria em funções até então.
A Assembleia-Geral prosseguiu os seus trabalhos em 15 de Junho, desta vez com um acréscimo significativo de associados presentes. Os 496 inscritos revelavam desde logo uma mobilização importante das partes em confronto. Apresentaram-se a sufrágio duas listas para a Direcção. Presentes na mesa de trabalhos o seu Presidente, o 1º e 2º Secretários (Alfredo Augusto Zarcos da Costa e Domingos das Neves Barroso, respectivamente) e também um representante de cada lista (A: Ângelo Francisco Pinheiro Candeias; B: Jesuíno de Sousa Matoso).
Houve um claro esforço de controlo e legalidade, tendo apenas sido admitidos para votação os sócios com apresentação de cartão e quota do mês anterior. A votação ditou a vitória da lista B (251 votos), com mais 25 votos que a lista derrotada, afecta ao Núcleo Desportivo e Cultural. Quase no final, o Presidente da Assembleia-Geral enalteceu a “forma correcta como os trabalhos haviam decorrido, congratulando-se pelo civismo patenteado por todos… e, não obstante terem estado em votação duas listas opostas, não terem havido vencidos nem vencedores, pois só verdadeiramente o Barreirense ganhara, perante tão expressiva manifestação de interesse clubista”.
Álvaro Monteiro, representante da lista A, propôs-se impugnar a Assembleia-Geral, alegando infracção do parágrafo único do artigo 68 dos Estatutos: “Os sócios enquanto empregados do clube não poderão tomar parte nas AG, eleger ou ser eleitos, sendo-lhes rigorosamente proibido discutir ou criticar os actos dos corpos gerentes” [tinham estado presentes dez atletas da equipa sénior de futebol, entre os quais Câmpora, Piloto e Serra]. Invocou ainda que a lista B incluía um elemento inelegível. Passavam dez minutos das três horas da madrugada, quando os trabalhos foram dados por encerrados.
Na sequência do processo eleitoral, a nova Direcção passou a ser presidida por Albino Macedo, sendo Fernando Fagundes o Presidente da Assembleia-Geral (1º Secretário: Álvaro Pinheiro Calhau, meu pai).
Simpatizante de ideias políticas esquerdistas, embora sem qualquer alinhamento partidário formal, não compreendi o que estava verdadeiramente em jogo nesse momento crucial da vida do clube. E distanciei-me das posições em confronto, numa postura neutral, que poderia ter contribuído para uma evolução perigosa do FCB, pretensamente a coberto de ideais respeitáveis mas com um enorme potencial de deriva totalitária. O que pouco depois, felizmente (!), entendi, com clareza e arrependimento.
O Núcleo Desportivo e Cultural prosseguiu entretanto a sua actividade. Em 30 de Agosto de 1976 emitiu um comunicado, sem conhecimento prévio da Direcção do FCB, criticando publicamente a demissão do até então Director Geral dos Desportos, Melo de Carvalho. Albino Macedo não tolerou essa atitude, invocou falta de confiança nos elementos do Núcleo Desportivo e Cultural e, sustentado nos Estatutos, procedeu à sua suspensão, ratificada numa Assembleia-Geral Extraordinária, realizada em 8 de Novembro de 1976, muito participada, com 456 associados inscritos, número particularmente significativo, para um clube que tinha então 4.000 filiados. O Núcleo Desportivo e Cultural dissolveu-se, e veio a constituir-se como Núcleo Desportivo e Cultural do Barreiro, de efémera duração.
Mais liberto de alguma guerrilha político-partidária, o FCB estabilizou e a Assembleia-Geral seguinte (15 de Abril de 1977) foi de novo caracterizada por um número menos relevante de sócios, apenas 42 presenças.
a
[Excerto do Capítulo V - Reuniões Magnas
Livro PROVA DeVIDA - Estórias e memórias do meu Barreirense]
(continua)