segunda-feira, setembro 29, 2008

Memória Barreirense (II)



“Não há um princípio para as coisas e para as pessoas,
tudo o que um dia começou tinha começado antes”
José Saramago

Não estivesse eu vigilante ao cumprimento da promessa de rigor feita a quem me lê, afirmaria sem desassossego que a minha ligação umbilical ao Futebol Clube Barreirense (FCB) começou poucas horas depois de cortado o cordão. De facto, ainda eu não completara metade de dia vivido, já o meu progenitor sentia o apelo da sua paixão clubista, e acrescentava mais um elemento à massa associada do FCB. Não surpreende então que, desde pequeno, tenha acompanhado o meu pai nas emoções domingueiras dos jogos da equipa de futebol e nas conversas de café – da tertúlia sedeada no nosso mítico Ginásio-Sede.
Conheci grandes Adeptos e grandes Dirigentes. Com eles vivi, em camarotes, bancadas e peões deste Portugal, algumas das gloriosas subidas à I Divisão, a vitória na Taça Ribeiro dos Reis, a participação na Taça das Cidades com Feira. E com eles comemorei algumas das inesquecíveis proezas do basquetebol sénior, como a Taça de Portugal conquistada em Almeirim, e muitas das vitórias dos escalões mais jovens.
Mais tarde, completada a minha licenciatura, António Martins Tonicha disse-me algumas vezes: “o Doutor tem de ser Director” e “o Doutor ainda há-de ser Director”. Eu, sorria… convicto da dificuldade em conciliar o meu percurso académico-profissional, com as tarefas e as responsabilidades de tão nobre quão exigente missão. Tempo para o ‘Manuel de Mello’ e para o Ginásio-Sede ainda se ia arranjando. Mas para mais…
Até que em 2004 a ‘coisa’ aconteceu. Num momento difícil para o FCB, em particular na relação entre as duas modalidades mais representativas – o futebol e o basquetebol –, aceitei levar até às últimas consequências o desafio que dirigira ao Presidente da Direcção numa Assembleia-Geral tensa, mas para mim memorável. E integrei a lista de Manuel Lopes, como Vogal da Direcção. Na noite de 21 de Julho, em dia de aniversário do meu filho, tomei posse. E jurei “cumprir com lealdade as funções que me foram confiadas”.
Completei 50 anos em Maio último. O que significa que sou Barreirense há 50 anos. Barreirense de nascimento e residência. Barreirense de filiação clubista. Quando receber, em 11 de Abril de 2008, o Emblema de Ouro do FCB, sei que uma emoção muito forte me percorrerá. Que uma alegria imensa brotará de mim. Vai ser bonito. Muito bom!
Aprendi, desde relativamente cedo, que Amizade significa Dar e Receber. A minha relação com o FCB é, foi sempre, muito para além de uma relação de Amizade. É, sempre foi, uma relação bem mais complexa. Recheada de Amor e de Paixão. Temperada pelas Vitórias e pelas Derrotas. Aprofundada por inesquecíveis momentos de Comunhão e Fraternidade. Enriquecida pelos Grandes Barreirenses que conheci, por contacto directo e pessoal, e pelo relato, oral ou escrito, dos que com Eles e Elas conviveram.
Num momento tão expressivo da minha vida, quis oferecer uma prenda ao meu Barreirense. E concebi este livro. É uma “prova devida”. Simples e despretensioso. Falarei de pessoas e de factos. Vitórias e derrotas. Alegrias e tristezas. Encontros e desencontros. Ilusões e desencantos. Amores e raivas. Uma “prova de vida”, sobretudo do clube, mas também minha. São estórias e memórias que vivi directamente, numa parte significativa, e que salpiquei com breves referências de carácter histórico do FCB, do Barreiro e de Portugal, para um necessário, e julgo que enriquecedor enquadramento do texto, sem exigências científicas, mas com um sincero esforço de rigor e exactidão.
Com António Torrado da Silva, um dos meus Mestres da Medicina, aprendi que “se deve dizer a verdade, apenas a verdade, mas nem sempre toda a verdade”. Foi o que procurei fazer. Julgo ter sido suficientemente verdadeiro. Mas, aqui e acolá, fui prudente na mensagem e comedido no adjectivo. Sem auto-censura, mas com sentido dos limites e das responsabilidades. Procurei uma escrita simples e leve, interessante e atraente. Empenhei-me, tanto quanto me foi possível, numa descrição e interpretação objectivas, dos personagens e das situações. Mas o comentário e a opinião também ocuparão o seu espaço. A subjectividade aí está, mais ou menos presente e intensa. Explicável, em boa medida, pela intensidade, o coração com que tantas vezes me embrenhei, quiçá excessivamente, nos acontecimentos. Falarei sobretudo do passado e da actualidade. Mas o futuro, que já começou, também estará presente. Com o propósito, firme e convicto, de desafiar os Barreirenses para uma reflexão séria, profunda e participada, acerca do clube que escolhemos como nosso, e que tanto amamos.
Espero que as descontinuidades e as oscilações cronológicas que caracterizam a estrutura do texto sejam bem compreendidas e aceites por todos. Alguns erros, inexactidões ou omissões, estarão inevitavelmente presentes neste trabalho. Os leitores não duvidarão que são involuntárias, e saberão certamente desculpar-me; assim como os protagonistas dos factos e das vivências que aqui descrevo.
Integrei alguns textos publicados nos últimos anos: no Jornal do Barreiro e em Rostos, órgãos de Comunicação Social dirigidos respectivamente por Miguel de Sousa e António Sousa Pereira, que têm prestado relevantes serviços ao Barreiro, ao Desporto e ao FCB; nos fora LCB.PT (entretanto extinto) e BasketPT; em http://www.fcbarreirense.pt/ (sítio
oficial do basquetebol do FCB) e na revista Barreirense Basket, de que fui Director. Desses textos conservei, quase sempre, a sua forma original. Apenas efectuei, pontualmente, pequenos ajustes, correcções e actualizações.
Este trabalho resultou de um forte impulso pessoal. Mas não teria sido possível sem o encorajamento e a contribuição do Ricardo Calhau e do Jacinto Nunes. Sem a compreensão de Vítor Serpa e Miguel de Sousa, que disponibilizaram os arquivos de A Bola e do Jornal do Barreiro. Sem a colaboração da Biblioteca Nacional, que me permitiu a consulta de jornais e revistas do seu vasto e riquíssimo espólio. Sem a leitura de obras como O Barreiro Contemporâneo (Armando da Silva Pais), 70 Anos de Vida do Futebol Clube Barreirense (José Rosa Figueiredo) e História do Basquetebol em Portugal (Albano Fernandes). E, sobretudo… sem os Barreirenses!
A todos, o meu Agradecimento.
Termino com palavras belas e generosas de César Oliveira (Os Anos Decisivos, Editorial Presença, 1993): “Este livro é, antes de mais, a história de um tempo que é a minha própria pele, o ‘sangue do meu sangue’, o meu próprio percurso por dentro de uma vida que foi sempre, mais do que algo de colectivo, uma vida-com-os-outros-que-fizeram-o-meu-próprio-tempo”.


[Prefácio do livro PROVA DeVIDA - Estórias e memórias do meu Barreirense]