domingo, setembro 28, 2008

Memória Barreirense (I)


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Os livros e as cidades criam raízes em torno de marcas identitárias. Em tempos de globalização em que o nosso bem-estar pode ser ameaçado pela má disposição de um emir do petróleo, pelo dumping social de qualquer tigre longínquo ou pelo bater de asas de uma borboleta nos antípodas, é ainda mais importante a ligação a raízes culturais, linguísticas, ou religiosas, locais ou nacionais.
O fenómeno desportivo constitui um elemento singular de socialização, de sublimação das energias outrora dispendidas em conflitos tribais, de promoção de práticas de vida saudável ou de mobilidade social.
Também aqui a dialéctica global/local se faz sentir de forma impressiva. Nunca como hoje a multiplicação mediática dos canais desportivos e do espaço na comunicação social generalista cria fenómenos universais em torno do Real Madrid ou da NBA, de Cristiano Ronaldo ou de tão eficazes quanto sedutoras tenistas russas.
Mas a dimensão humana exige um espaço de proximidade, apela à auto-estima pelas raízes do nosso local de origem ou de adopção.
O Futebol Clube Barreirense é uma peça fundamental da idiossincrasia única deste nosso espaço à Beira Tejo. De uma terra nascida da relação com o rio, da abertura aos vastos espaços a sul, primeiro de colonização romana, depois da agricultura e da tecnologia árabe, mais tarde terra da Ordem de Santiago, o Barreiro conquistou nos sécs. XIX e XX características únicas associadas à sua localização privilegiada e ao desenvolvimento do que chegou a ser o maior pólo industrial da Península Ibérica.
As decisões de localizar aqui o terminal da linha ferroviária de Sul e Sueste, na segunda metade do séc. XIX, e de instalar a CUF em 1908 marcaram o destino de um caso único no contexto social português assente numa cultura de academia operária, em que a dimensão associativa constitui parte dos rituais de identificação, que fazem com que um barreirense nunca diga que é de Lisboa e só supletivamente se identifique com os clubes da cidade vizinha da margem norte do Tejo.
Fundado em 1911 o Futebol Clube Barreirense insere-se na história de uma vila que passou de oito mil habitantes em 1900 para 88 mil em 1981, que chegou a ter cinco bandas de música, vários teatros em actividade e caso único para além de Lisboa, três equipas nas duas principais divisões de futebol nos anos 60.
Podemos olhar como referências para Álvaro Velho ou Alfredo da Silva, Henrique Galvão ou Augusto Cabrita, mas sem a gesta heróica da construção do Ginásio-Sede, sem José Augusto, Albino Macedo, Chalana ou Betinho o nosso coração bateria a um ritmo diferente, o nosso imaginário seria mais pobre. Estamos a poucos anos de celebrar um século de percurso comum feito com o suor de tantos corticeiros, ferroviários e operários têxteis, metalúrgicos ou químicos. De tantos filhos adoptivos, sobretudo alentejanos e algarvios, que aqui procuraram trabalho e se fixaram recusando cruzar o Tejo. Esta terra que produziu a sua pequena elite orgulhosa das suas raízes, de Dulce Cabrita a Maria de Lurdes Resende, de Armando da Silva Pais ou Manuel Cabanas a Daniel Cabrita, de Manuel Figueira a Isabel do Carmo, de Alzira Seixo a Kira, para não falar na geração que me é próxima, de Octávio Ribeiro ou de Fernando Sobral, foi também a origem ao longo do século XX de uma escola de talentos desportivos.
Este livro de Paulo Calhau é um exemplo notável desta alma barreirense, escrito por um filho da diáspora algarvia que investiu na formação, que se distinguiu pelo seu brio como estudante, pela sua dedicação como médico, pelo seu empenhamento cívico, mas que não se sentiria completo sem a dádiva de emoção de 50 anos de filiação barreirense.
O texto a descobrir, esta “PROVA DeVIDA”, tem a marca do amigo mais velho que aprendi a admirar na nossa juventude na Verderena e nas tertúlias de estudo e de discussão política, desportiva e social do velho café Bonanza. O Paulo Calhau sempre se destacou pelo rigor da palavra, a discrição na afirmação pessoal e pela entrega solidária, primeiro aos amigos, mais tarde às crianças na sua vivência clínica na qual manifestou também a sua honradez e invulgar dedicação ao espírito de serviço público.
As memórias deste livro são as do Paulo, mas muitas são de toda a nossa geração. Uma história que nos antecede e de que ele faz parte desde o dia do nascimento, é a do Barreiro, a do Futebol Clube Barreirense, um fresco de leitura irresistível sobre as glórias e as tristezas com um pano de fundo das profundas transformações porque passaram, a cidade e o clube, ao longo de 50 anos tendo pelo meio a marca indelével do 25 de Abril.
Tenho com o Barreirense uma relação de paixão tranquila que nunca teve o empenho desportivo, emotivo e a dedicação do Paulo Calhau. Quis o acaso ser desafiado para aliar a participação cívica como então Presidente da Assembleia Municipal do Barreiro, à Presidência da Mesa da Assembleia Geral do Barreirense, em tempos que se vieram a revelar de decisões complexas e dolorosas para o futuro do Clube. A intervenção do Paulo Calhau na Assembleia Geral de 17 de Março de 2004, o testemunho que deu de paixão e rigor pela terra e pelo clube, marcaram de forma decisiva o empenho de um grupo que se revelou essencial para a salvaguarda da identidade desportivamente plural do Barreirense.
Com a sua participação activa Paulo Calhau teve uma voz serena mas firme para que decisões como a venda do D. Manuel de Mello, a definição dos futuros espaços desportivos ou o papel da escola de formação de basquetebol, fossem partilhadas por muitos, mas sobretudo fossem responsabilidade de todos.
A experiência directiva do Paulo Calhau no Barreirense correspondeu ao seu exemplo de vida com uma dedicação extrema ao interesse colectivo, deixando para trás as preocupações pessoais, profissionais ou familiares. O basquetebol consolidou-se como caso invulgar de sucesso nos escalões de formação, a presença na Liga foi garantida, entre Sevilha e Madrid a maior confirmação do Eurobasket foi Betinho, falta ainda reforçar os alicerces, escorar o edifício, assegurar o futuro.
Este livro é um testemunho maduro de meia vida, prova de um coração e inteligência barreirenses. É uma manifestação de generosidade com a qual todos aprendemos muito e nos reencontramos em algumas páginas, é um testemunho pessoal, não um ensaio ou uma tese de historiografia desportiva.
Para mim, que tenho a sorte de ter o Paulo por amigo há mais de trinta anos foi com surpresa e emoção que recebi este inesperado desafio para prefaciar uma parte das nossas histórias e destino em comum.
Este livro é uma merecida prenda para o quase centenário Barreirense e a certeza de que continuaremos a contar com o amigo, o cidadão, o autor… obrigado Paulo Calhau.

[Prefácio de Eduardo Cabrita ao livro
PROVA DeVIDA - Estórias e memórias do meu Barreirense]

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