sexta-feira, janeiro 02, 2009

Memória Barreirense (XXXVII)


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Não apaguem a memória
Fernando Dacosta

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11 de Abril de 1911

Estudante liceal, Francisco Augusto Nunes de Vasconcelos foi um dos fundadores do FCB e, com apenas 15 anos (!), o seu primeiro Presidente, integrando uma Direcção constituída ainda por José Joaquim Lopes (1º Secretário), José Fernandes Júnior (2º Secretário), António de Oliveira (Tesoureiro), António Lopes Quintino e José Duarte Silveira (Vogais).
Foi a 11 de Abril de 1911 que nasceu o Foot-Ball Club Barreirense. Num dia muito chuvoso, como destacou O Século, na edição do dia seguinte:

O Tejo, engrossado também com as chuvas que teem caído nas terras ribeirinhas, esteve egualmente muito carrancudo, levando uma grande corrente e pondo em risco as embarcações, cujos arraes, menos previdentes, as não puzeram em logar seguro, fazendo, como tantos outros, que, ou reforçaram as amarras, ou as metteram nas docas do abrigo.

O Concelho do Barreiro tinha nesse ano uma população de 12.203 habitantes, dos quais 8.355 residentes na Vila do Barreiro (Fonte: 5º Recenseamento da População de Portugal).
Algumas actividades económicas, como a piscatória e a agrária, entravam em decadência, por efeito do desenvolvimento de dois sectores catalisadores do Barreiro Moderno – o Barreiro Industrial. Refiro-me aos Caminhos-de-Ferro de Sul e Sueste, criados por Carta de Lei de 26 de Agosto de 1854, da responsabilidade do Conselheiro Joaquim António de Aguiar e, sobretudo, à expansão da CUF, dirigida desde
1898 por Alfredo da Silva, empresário dinâmico e visionário. A indústria corticeira, em que os principais empresários eram estrangeiros (Braancamp e Herold) continuava a ser um importante factor de desenvolvimento local.
O Barreiro não tinha qualquer sistema de saneamento básico. Havia iluminação pública a petróleo e poços de água, destacando-se pela quantidade e qualidade o “Poço dos Dezasseis”, cuja denominação decorreu da quantia de dezasseis vinténs com que a população contribuiu para a sua construção. As doenças infecciosas, com destaque para a tuberculose, dizimavam a população. A mortalidade infantil era implacável, com 17 óbitos no primeiro ano de vida ao longo de 1910, ainda assim bem menos que as 41 mortes registadas dez anos antes. Existia uma cabine pública de telefone, posto de venda de gás na Rua Aguiar (família Costa Mano) e aluguer de motocicletas a cargo de Albino José de Macedo. E, no centro da vila, emergia a Igreja de Santa Cruz (século XIX) e a Igreja da Misericórdia (último quartel do século XV), com pórtico do século XVII, púlpito de mármore da Arrábida e silha de azulejos.
O ensino particular existia no Barreiro desde 1855 (Asilo D. Pedro V) e o oficial desde 1870, por acção de Joaquim Ferreira dos Santos, o Conde de Ferreira. Mas o seu crescimento, lento e quase restrito ao sexo masculino, não impediu uma elevadíssima taxa de analfabetismo. Que a acção das Colectividades e Sociedades Recreativas e dos Centros Políticos Republicanos e Socialistas, não foi capaz de diminuir significativamente, nessa primeira década do século XX.
Situado na Outra Banda “O Barreiro beneficia da proximidade de Lisboa. As inovações, quer a nível tecnológico, quer a nível económico, cultural ou outro, surgidas na capital, quase em simultâneo, eram implementadas e desenvolvidas na vila, afora a criatividade dos próprios habitantes.” (O Barreiro na transição do século XIX para o século XX, Ana Reis Barata e Rosa Gautier, edição da Câmara Municipal do Barreiro, 2005).

Outra Banda: Tal é o nome genérico que se dá aos arredores de Lisboa na margem esquerda do Tejo, que compreendem os Concelhos de Almada, Seixal, Barreiro, Moita, Aldeia Galega e Alcochete – terrenos em geral de baixa altitude, alagados pelos esteiros do rio, cobertos de charnecas, alastrados de gândaras, alfombrados de manchas espessas de pinheiral e aqui e ali com nesgas abençoadas de terreno produtivo.
(…) ainda do lado sul, Barreiro, Coina e de aí em diante novos esteiros se insinuam pelas terras, depositando o nateiro que as fertiliza e fazendo resplender ao sol os cristais alvinitentes das marinhas: tais são os esteiros do Lavradio, Alhos Vedros e Moita.
(…) desde o Seixal a Alcochete, ao longo da margem do Tejo – escreve o agrónomo Filipe de Figueiredo – o solo é quase um jardim continuado pela abundância e variedade das produções. A vinha, a batata, o arroz, o repolho, o tomate têm larga e intensa cultura.
A Outra Banda, para o turista, se não lhe oferece monumentos nem curiosidades artísticas a admirar, proporciona-lhe em compensação uma série inolvidável de maravilhosos panoramas de Lisboa, que, no fundo dos esteiros, aparece esfumada pela distância, vaga, vaporosa, envolvida como que de um halo de sonho e de mistério. Esses panoramas admiráveis e o simples prazer da excursão, atravessando em toda a sua a largura o rio majestoso e calmo, em demanda dos pontos mais recuados da margem, recomendam por si sós uma ida a estas paragens edénicas, onde Lisboa, no afastamento e na miragem, se poetiza em sfumato e nimba de ternura.
(Guia de Portugal, Fundação Calouste Gulbenkian, 1ª edição publicada pela Biblioteca Nacional de Lisboa em 1924)


A rede de transportes era precária. Diligências que trabalhavam todos os dias de manhã e à tarde, (excepto aos domingos, em que operavam apenas de manhã), faziam o percurso de Barreiro a Azeitão pelas estradas 89C e 89 em cerca de duas horas e meia (!). Mais rápida, aproximadamente cinquenta minutos, era a deslocação a Lisboa (Terreiro do Paço) em vapores dos Caminhos-de-Ferro do Estado, num percurso deliciosamente descrito por Fialho de Almeida:

Enquanto o vapor não chega, detenho-me a abranger amorosamente, dos terraços da estação do Barreiro, a marinha flácida que a meus olhos se desenrola, um quase nada perdida nas muselinas ondeantes da manhã. (…)
Daquela altura da riba, a expansão que faz o Tejo dá-me uma sensação de taça cheia, tão fechado o circuito das suas margens. (…)
No primeiro plano, à direita, uma língua de areia contém moinhos e casarelhos brancos, muros de quinta, oliveiras e eucaliptos tristes que se curvam a saudar a lufada húmida da aurora, vinda da barra. Pela esquerda é uma barreira brusca de terra vermelha, alteada, chanfrada, comida dos assaltos das cheias, rachada da água, com cabelugens de mato e pinheiros anões dum verde bronze. As casas parecem sucessivamente mais humildes, à medida que se distanciam dos planos além da perspectiva – são quadradinhos de caliça, com pontos negros de portas e janelas, telhados negros, paliçadas de quintais e de arribanas.

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Portugal Republicano

A linguagem radical utilizada pelos republicanos atraíra com relativa facilidade “os desiludidos com uma Monarquia prisioneira do rotativismo político, repetidamente acusada de ser incapaz de advogar os interesses nacionais e de se manter no poder à custa da cedência aos agentes económicos que lhe servem de suporte. O discurso republicano apela ao nacionalismo, apregoa um regime defensor das classes operárias e denuncia a corrupção política e económica (Socialistas na oposição ao Estado Novo, Susana Martins, edição Casa das Letras, 2005).
Saído da Revolução de 5 de Outubro de 1910 “em menos de um ano, o Governo Provisório conseguiu cumprir alguns dos pontos principais do programa republicano, bem como consolidar o novo regime, assegurar a ordem pública interna e alcançar o reconhecimento por parte das potências estrangeiras” (Breve História de Portugal, Oliveira Marques, Editorial Presença, 1995).
Em Março de 1911 foram criadas as Universidades do Porto e de Lisboa e em Abril foi aprovada a Lei da Separação da Igreja e do Estado. A 11 de Abril o Diário de Notícias divulga, na primeira das suas 6 páginas, a abertura do processo eleitoral do Partido Republicano em Lisboa:

As eleições
Candidatos por Lisboa
Para dar cumprimento ao n.º 10 do art. 30.º da lei organica do partido republicano e á actual lei eleitoral, convido os membros em effectividade da commissão municipal de Lisboa para:
conjunctamente com os membros em effectividade das commissões parochiaes do circulo oriental (1.º e 2.º bairros) no dia 17 do corrente; e conjunctamente com os membros em effectividade das commissões parochiaes do circulo ocidental (3.º e 4.º bairros) no dia 21 do corrente, escolherem os candidatos ás constituintes pelos respectivos círculos.
Estas eleições começam ás 9 horas da noite e são feitas por escrutínio secreto, devendo os membros das commissões virem munidos dos seus cartões de identidade.
O presidente da commissão municipal. – Afonso de Lemos.


Os candidatos às eleições legislativas de Maio pertenciam na sua maioria ao Partido Republicano de Afonso Costa, António José de Almeida, Bernardino Machado, Brito Camacho e Teófilo Braga.
A Assembleia Nacional Constituinte saída dessas eleições aprovou a Constituição em Agosto e, pouco depois, Manuel de Arriaga venceu Bernardino Machado na eleição para Presidente da República.
Também no Barreiro a causa republicana encontrou simpatia e aceitação. O Século, na sua edição de 11 de Abril de 1911, divulgou mais uma actividade pública patrocinada pelo movimento republicano local: “O Centro Republicano Dr. Estêvão de Vasconcellos juntamente com a Sociedade Democrática União Barreirense, promove para o dia 1.º de Maio uma recita ao theatro Independente desta villa, que será desempenhada por uma das melhores companhias dos theatros de Lisboa”.
Mas, apesar das palavras optimistas e laudatórias do historiador – não comungadas por outros investigadores como José Hermano Saraiva (História Concisa de Portugal, Publicações Europa-América, 18ª edição, 1996) –, Portugal era um país dilacerado pela crise económica e atravessado por uma permanente e perigosa instabilidade política. Depois dos momentos iniciais de arrebatamento e euforia, a situação política e o entusiasmo inicial degradaram-se progressivamente, mergulhando Portugal na retórica e na demagogia:

A República parecia, de facto, perdida e à deriva. O poder autocrático e distante dos últimos tempos da Monarquia fora substituído por um poder dissoluto, deliquescente, que parecia sem rumo. A aristocracia caduca e inculta dera lugar a uma pequena-burguesia ávida de acreditação social e de importância pública. Aos marqueses de berço e aos condes de ocasião dos saldos finais da Monarquia, tinham-se sucedido os maçons, os comerciantes lisboetas, os banqueiros em ascensão, os funcionários da província, os jornalistas panfletários, os intelectuais auto-designados. (...)
Fora alguns restritos círculos político-intelectuais da capital ou do Porto, ignotas tertúlias de cidades do interior e alguma oficialidade dos destacamentos militares aí sediados, nenhuns outros portugueses seguiam com atenção ou sequer entendiam os floreados absurdos dos discursos dos deputados que supostamente os representavam no Parlamento de Lisboa ou a grandiosidade oca dos debates que aí ocorriam.
(Miguel Sousa Tavares, Rio das Flores, Oficina do Livro, 2007)
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[Excerto do Capítulo VI - Quase Centenário
Livro PROVA DeVIDA - Estórias e memórias do meu Barreirense]
(continua)