domingo, outubro 05, 2008

Memória Barreirense (III)



Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, dentro de mim!

(Miguel Torga)


13 de Maio de 1957

Chuva intensa na área de Lisboa, com as inevitáveis e gravosas inundações nas zonas ribeirinhas. Quadragésimo aniversário das aparições de Fátima. Presentes cerca de meio milhão de portugueses. O Diário de Notícias destacou na página de abertura as palavras proferidas na véspera, na Cova da Iria, por D. Manuel Gonçalves Cerejeira: “Está em Fátima o coração do mundo inteiro elevando ao céu um apelo de paz e de justiça”. Também preocupado pelos problemas da paz e da guerra, J. Berkowitz escreveu no mesmo diário – órgão oficioso do Estado Novo, dirigido por Augusto de Castro – “A guerra-fria atómica”, acerca do perigo nuclear soviético. Noutro registo político, o República – dirigido por Carvalhão Duarte e como sempre “visado pela Comissão de Censura” – publicou o editorial “Oportunidade”, crítica frontal a um semanário de inspiração monárquica, no qual se defendia a restauração da Monarquia. E, em página interior, o corajoso jornal “de todos os Republicanos e Democratas” não esqueceu a perseguição a Arthur Miller, prestigiado escritor norte-americano:

O dramaturgo Arthur Miller, premiado com o Prémio Pullitzer, compareceu hoje num tribunal de Washington para responder a acusações de desprezo pelo Congresso. O autor teatral asseverou que nunca fora comunista. Declarou-se não culpado das acusações originadas pela sua recusa em responder a perguntas acerca de alegadas ligações comunistas de outras pessoas, durante o inquérito feito pela Comissão de Actividades Antiamericanas da Câmara dos Representantes em 21/6/1956. Recusou-se por “questões de consciência” a identificar pessoas com as quais se supõe ter assistido a comício pró-comunista em 1947.

A Bola, dirigida por António Ribeiro dos Reis e Cândido de Oliveira, destacou em primeira página o FCB-Benfica da véspera, para as meias-finais da Taça de Portugal, e que os lisboetas venceram por 1-0. Grande enchente no Campo D. Manuel de Mello. O Benfica de Costa Pereira, Coluna e José Águas, treinado por Otto Glória, fez-se acompanhar de uma enorme massa de adeptos que, a par da falange Barreirense, deu enorme colorido e alegria à baixa da nossa vila. “A solução empate teria sido a melhor”, assim traduziu o jornalista Vítor Santos, o bom jogo da equipa visitada, treinada por José João – pai de Armando Soares, valoroso toureiro camarro –, onde se destacaram o jovem e emergente José Augusto e o acutilante Faia. Este último seria no dia seguinte convocado para o Itália-Portugal, de apuramento para o Campeonato do Mundo. Uma semana mais tarde, o Benfica confirmou a sua presença na final, ao derrotar com naturalidade o FCB por 4-0, no Estádio da Luz. Ainda no desporto, destaque nos jornais do dia 13 de Maio para o regresso do Salgueiros à I Divisão e o 4º lugar de Ribeiro da Silva – estreante nas grandes provas internacionais – na Volta à Espanha em Bicicleta. Na página 3 de A Bola, Teotónio Lima, publicou a crónica do I Portugal-Marrocos em basquetebol, realizado na véspera no Pavilhão dos Desportos, e que terminou com vitória portuguesa por 66-63. “Jogo pobre de técnica e de espectáculo” assim titulou o respeitado jornalista, treinador e professor. Dos nove seleccionados portugueses, três eram do FCB – José Valente e os irmãos Macedo (Albino e José). A RTP, com abertura prevista para as 21h30, tinha a seguinte programação: 21h33 Orquestra de arco infantil da Fundação Musical dos Amigos das Crianças; 22h Noticiário e actualidades nacionais e internacionais; 22h20 Intervalo; 22h25 Tribuna desportiva; 22h35 Teatro; 23h00 Últimas notícias; 23h05 Fecho. Na diversão lisboeta, o República anunciava “O Monstro do Cérebro Atómico” em estreia no Olímpia, “filme de terror e emocionantes aventuras” com Richard Denning e Angela Stevens (sessões às 14h e 19h). O Teatro Variedades, em sessões às 20h45 e 22h45, tinha em cena “Há horas felizes” dirigido por Henrique Santana, com Vasco Santana, Bibi Ferreira, Gisele Robert, Costinha, Raul Solnado e Carlos Coelho (maiores de 17 anos). No Barreiro, o Cinema Ginásio projectara na véspera “Não fugirás a isto” com June Alyson e Jack Lemmone (maiores de 12 anos) e o vizinho Cinema Teatro exibira ”Um caso diabólico” com Jean Gabin e Daniele Delorme (maiores de 17 anos). Na vida política local, a última reunião semanal da Câmara Municipal do Barreiro (Presidente José Alfredo Garcia, Vice-Presidente Victor Rodrigues Adragão e Vereadores Natália Tavares de Castro, Agostinho Martins Nunes, Gilberto Tavares dos Santos e José Francisco Sabino), merecera a habitual referência do Jornal do Barreiro. Destaque para a apresentação do Balancete com “existência em cofre de um saldo em dinheiro de 1.230.227 escudos e 70 centavos”, a “concessão de abono de família ao trabalhador José Fernandes para seus filhos Fradique e Amélia, e o anúncio do transporte de doentes aos Hospitais Civis de Lisboa”. A fazer crer na síntese da reunião, pode admitir-se, com alguma margem de acerto, que terá sido uma reunião de limitada duração, escassa conflitualidade e um saldo considerável em cofre. Outros tempos...

Portugal amordaçado
Multifacetada, a luta contra o Estado Novo começa antes de ele ter sido, em 1933, oficializado. Inicia-se a seguir à imposição da ditadura, consequência do 28 de Maio, através de atentados, revoluções, golpes – alguns falhados por muito pouco. Franjas diversificadas da sociedade portuguesa contestaram, na verdade, e desde sempre, o regime saído do golpe militar que pôs fim ao sistema democrático da nossa, então, jovem e atribulada República. Em todos os sectores germinaram, emergiram, repúdios a Salazar, que conseguiu, no entanto, vencê-los sistematicamente. (…) Uma eficiente máquina controladora é, entretanto montada. Prisões, torturas, assassínios, exílios, desterros, generalizam-se contra os discordantes. (…) O País torna-se um campo dividido, repartido: num lado os bons, o seu; no outro os infiéis, os opositores. (…) Um dos esforços mais exercitados publicamente pelo Estado Novo foi o de não deixar emergir ilusões sobre o nível de vida económico reservado aos portugueses. Nação pobre e periférica, a nossa, não suportaria veleidades consumistas como as que, a partir do após-guerra, passaram a vigorar nas democracias liberais europeias. Reivindicá-las (como exigiam os críticos do regime), desfrutá-las (como praticavam os filhos dos situacionistas), era pôr o País acima das suas possibilidades, comprometendo-lhe a independência e o futuro. (…) A nossa sobrevivência assentava na modéstia das ambições, escorada, num funcionalismo público (mal pago mas estável), num comércio de bairro (sustentáculo das famílias urbanas), numa agricultura de subsistência (esteio dos rurais), e numa emigração escondida, com remessas, no entanto, de cada vez maior significado. A inexistência de subsídios de doença, invalidez e desemprego, de assistência social e médica, de reformas (generalizadas) de velhice, atirava os desfavorecidos para fora das obrigações do estado, entregando-os ao voluntarismo das comunidades. (…) Os actos de inovação artística, de ousadia cultural, vêem-se neutralizados. O regime revela-se definitivamente contrário à modernidade e à universalidade, ao desenvolvimento e à experimentação, à diferença e ao pluralismo. (Máscaras de Salazar, 12ª edição 2006, Casa das Letras)

O magnífico retrato do Portugal de Salazar – atrasado e miserabilista, isolado e autoritário – que Fernando Dacosta escreveu em páginas de grande rigor e beleza, era o País triste e pessimista que me viu nascer. A nível interno, o ano de 1957 foi marcado por quatro acontecimentos de maior destaque: a visita de Isabel II de Inglaterra (Fevereiro) – testemunho de uma Aliança que, nas palavras de Winston Churchill na Câmara dos Comuns “dura há seis séculos e não tem paralelo na história do Mundo”; o início das emissões regulares da RTP (Março); a realização do V Congresso do Partido Comunista Português (Setembro) e do I Congresso Republicano de Aveiro (Outubro). Noutras paragens e noutras latitudes, ocorreu a integração do Sarre na República Federal da Alemanha (Janeiro), foi assinado o Tratado de Roma (Março), proclamada a República da Tunísia (Julho), fundado o Reino de Marrocos por Sidi Muhammad (Agosto), concretizada a independência da Malásia (Agosto). O Sputnik (Outubro) e a cadela Laika (Novembro) foram lançados pela Rússia para o espaço, a NATO aceitou a instalação de mísseis norte-americanos na Europa (Dezembro) e decorreu a Conferência do Cairo (Dezembro).
(Fonte: Centro de Estudos do Pensamento Político - Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas).

Terra Camarra
Conta-se que o primeiro nome foi Camarro (cama sobre o barro), atribuído à zona pelos pescadores algarvios, que para pernoitar entre dias de pesca, a estas terras barrentas vinham procurar sossego e acolhimento. (…) O actual nome deixa no entanto mais clara a referência a uma zona conhecida por ter muito barro. (…) Em 1521 o lugar era paradisíaco, com praias de areia fina e de cor branca, uma vista deslumbrante para Lisboa, zona de boa pescaria e terras de pinhais, cereais e vinhedos. Lugar pacato em que a actividade piscatória era a sua principal actividade. Sede de Concelho desde 1521, com carta foral atribuída por D. Manuel. A sua localização, na zona em que os rios Tejo e Coina se encontram, bem como a largura dos leitos destes rios na zona, foram factores decisivos para que o seu papel nos Descobrimentos fosse relevante. Desta terra saiu madeira para reparações navais. Devido aos campos de cereais e vinhas foram construídos moinhos de vento e moinhos de marés assim como fábricas de biscoitos e fornos para cozedura de olaria e uma fábrica com forno para fabrico de vidro. (…) Após a época dos Descobrimentos, a pacatez voltou a ser notória, sendo a agricultura e a pesca as actividades principais do lugar. No entanto a época dos Descobrimentos, tinha chamado a atenção à realeza e seus pares, das qualidades "curativas dos ares das suas praias", assim como as boas produções de cereais e vinhos que estas terras davam. A nobreza investiu na compra de casas e terrenos na zona dando ao lugar, durante vários meses do ano outro movimento. Estes investimentos seriam anos mais tarde, e sem que alguém o almejasse, de enorme importância para o futuro do lugar chamado Barreiro, que era já um ponto de referência para quem do Sul demandava à capital depois de uma travessia perigosa pelas terras do Alentejo. (…) pertencem a eles [conselheiro Joaquim António de Aguiar e engenheiro Miguel Pais] os estudos, a apresentação dos projectos e a defesa em sede de parlamento, da localização do início da linha [férrea] do sul no Barreiro, assim como a construção de uma estação fluvial-ferroviária [Barreiro-Lisboa]. A linha de caminho de ferro estava a funcionar como íman, possibilitando posteriormente, o estabelecimento de outra grande indústria no Barreiro, a indústria corticeira que nas décadas de 60 e 70, trouxeram mais gente para o Barreiro, transformando a vila num autêntico pólo industrial e operário. O futuro estava traçado e outra grande mudança se preparava, orquestrada por Alfredo da Silva, com a implantação no início do século XX, das indústrias pesada e química. Não havia retrocesso. (extraído de Uma versão da história do Barreiro, 100nome.org)

Curiosamente, a linha ferroviária – que veio a privilegiar o Barreiro, com evidente benefício para o seu desenvolvimento – esteve inicialmente prevista para ligar o Montijo ao Sul. E a Ponte Vasco da Gama, a mais longa daáguas do estuário do Tejo, inaugurada a 4 de Abril de 1998, foi fortemente reivindicada pelo Barreiro, mas veio a ser construída entre Montijo/Alcochete e Sacavém, para grande desilusão e frustr Europa e a quarta mais extensa de todo o mundo, com os seus 17.2 km de comprimento, dos quais 10 estão sobre as ação da população Barreirense. A propósito do Barreiro saído da Revolução de 28 de Maio de 1926, Armando da Silva Pais escreveu:
O Barreiro, sendo embora uma vila já muito populosa e importante sob o aspecto industrial, estava impedido de se desenvolver a mais acelerado ritmo, por falta de três necessidades básicas: - rede geral de electricidade para força motriz e iluminação pública, a substituir nesta o deficientíssimo sistema de iluminação a petróleo - rede geral de água, boa e abundante, que substituísse o abastecimento pelo antigo “Poço dos Dezasseis”, do Mercado e outros, com ligações a chafarizes - rede de saneamento, com a qual terminasse o primário e anti-higiénico sistema de despejos e se melhorasse o estado do asseio da vila. (O Barreiro Contemporâneo, edição da Câmara Municipal do Barreiro, 1965)
O Estado Novo realizou um significativo conjunto de obras públicas no Barreiro: iluminação eléctrica (inaugurada em 1926); rede de abastecimento de água (inaugurada em 1937); rede de saneamento (inaugurada em 1927 e praticamente generalizada no Concelho em 1950); construção da Muralha Marginal (1932-1934); novas oficinas dos Caminhos-de-Ferro de Sul e Sueste (1933-1935); aterro da Praia Norte (1934-1936); Dispensário Anti-Tuberculoso (1934); Avenida Batalhão de Sapadores de Caminhos-de-Ferro (1935); Parque Oliveira Salazar (1939); Estação dos Correios, Telégrafos e Telefones (1943); Asilo de S. José, da Santa Casa da Misericórdia (1956); fundação dos Transportes Colectivos (1957). E, pouco depois do meu nascimento, a Central Telefónica Automática (1958) e o Hospital de Nossa Senhora do Rosário (1959). Mas, apesar de algum progresso, as carências eram muitas, nomeadamente pelos graves problemas habitacionais para as classes mais pobres. O panorama muito deficitário em instalações escolares no Barreiro da primeira República foi nas décadas seguintes significativamente melhorado, colocando o Concelho num lugar favorável no ranking distrital e nacional de percentagem de analfabetismo. Em 1957, o Concelho do Barreiro dispunha de 7 escolas primárias na freguesia do Barreiro, 2 na freguesia do Lavradio, e 6 na freguesia de Palhais. Em 1947, fora inaugurada a Escola Industrial e Comercial Alfredo da Silva, que em 1956 viu nascer novas instalações. No âmbito das escolas secundárias, o Colégio Barreirense de José Joaquim Rita Seixas fora fundado em 1930 e o Externato Moderno do Barreiro de Hélder Fráguas e José Barbado fora inaugurado em 1945. Em 1961 nasceria o Externato Diocesano Manuel de Mello, propriedade da Companhia União Fabril (CUF) e com direcção e administração da responsabilidade do Patriarcado de Lisboa. O Barreiro era em 1957 um Concelho com cerca de 35.000 habitantes, dois terços dos quais residentes na freguesia do Barreiro; o terço restante dispersava-se pelas duas outras freguesias então existentes, Lavradio e Palhais. Ocupava, no início da década, o 9º lugar na escala dos maiores centros populacionais urbanos, atrás de Lisboa, Porto, Setúbal, Coimbra, Vila Nova de Gaia, Braga, Évora e Matosinhos.

[Extracto do Capítulo I - Nascer e Crescer
Livro PROVA DeVIDA - Estórias e memórias do meu Barreirense]
(continua)