sábado, outubro 18, 2008

Memória Barreirense (IX)



Pensamento que não age ou é aborto ou traição
(Romain Rolland)


21 de Julho de 2004

Foi uma sexta-feira especial. Dia típico de Verão, com sol e muito calor. A jornada de trabalho no Hospital Garcia de Orta decorrera com toda a normalidade. Cerca das dezanove e trinta cheguei ao restaurante Grelhador-Mor onde, na companhia de alguns familiares mais próximos, celebrei o 16º aniversário do meu filho Ricardo. A confraternização foi agradável, mas alguma ansiedade percorreu-me por esses instantes. Pouco depois, iria estar presente na Assembleia-Geral do FCB, destinada à eleição dos Órgãos Sociais para o biénio 2004-2006. E integrava, como Vogal, a única lista que se apresentava a sufrágio. Apagadas as velas, dirigi-me para o Ginásio-Sede. O meu grande amigo Jacinto Nunes, campeão nacional juvenil de basquetebol na temporada de 1970/1971, lá estava, discreto e solidário, como sempre. Setenta e cinco associados marcaram presença no acto eleitoral. Foi com orgulho, alguma emoção e grande sentido de responsabilidade, que reagi à apresentação do resultado da expressão livre dos meus consócios que, com escassos cinco votos nulos, sufragaram por maioria esmagadora a lista assim constituída:

Mesa da Assembleia-Geral
Presidente: Eduardo Arménio Nascimento Cabrita • Vice-Presidente: António Simões Coimbra • 1º Secretário: Pedro Alexandre Chora Estadão • 2º Secretário: Marcelino Vítor Cândido Atafona

Direcção
Presidente: Manuel Marques Lopes • Vice-Presidente: Paulo Jorge Gomes Pardana • Secretário-Geral: Jorge Manuel da Silva Gouveia • Secretário Adjunto: António José Vieira Bravo • Tesoureiro: Alexandre Batista Ramos • Tesoureiro Adjunto: Maria do Rosário Estevam Pina • Vogal: José Paulo Alves Pinheiro Calhau • Vogal: Francisco Manuel Vargas Cabrita • Vogal: Aníbal José Teixeira dos Santos • Suplente: Joaquim dos Santos Moreira • Suplente: António Francisco Soares Cristina • Suplente: José Armando dos Santos da Glória

Conselho Consultivo e de Contas
Presidente: Albino António da Silva Macedo • Secretário: António Vilhena Marreiros • Relator: Mário Fernando da Silva Pereira • Suplente: José Carlos Rodrigues Silva Lourenço • Suplente: António Manuel da Silva Macedo.

Ao ser chamado para assinar o livro de posse, disse ao Carlos Pires, velho amigo de há quase quarenta anos, que se encontrava a meu lado: “Carlos, vais ter de me ajudar muito!”. Ele, que fora um dos maiores inspiradores do meu envolvimento em responsabilidades directivas, respondeu afirmativamente, circunspecto e compenetrado, com um ligeiro aceno da cabeça.
Efectuada uma fotografia da recém-eleita equipa directiva, publicada na edição seguinte do Jornal do Barreiro, recebi abraços e palavras de estímulo de associados, familiares e amigos, que obviamente não me foram indiferentes. E regressei a casa. Consciente das dificuldades e dos desafios que me esperavam. Mas empenhado em responder com competência, seriedade e dedicação. Tinham sido os primeiros momentos como dirigente do clube. Muitas coisas, umas boas, outras nem por isso, iriam acontecer.



Vale a pena recordar

Eduardo Cabrita, Presidente da Assembleia-Geral, marcara para 17 de Maio de 2004 uma reunião magna para discussão e votação do Balanço e Contas de 2003 e eleição dos Órgãos Sociais para o biénio 2004-2006.
De acordo com os Estatutos, o Balanço e Contas referente a 2003 e a previsão orçamental para a temporada 2004/2005 foram expostos para consulta e apreciação dos associados no átrio do Ginásio-Sede, alguns dias antes da Assembleia-Geral. Os mais atentos deram-se então conta por esses dias, de que a rubrica destinada à orçamentação do basquetebol sénior não estava preenchida. Essa omissão, prontamente divulgada entre os mais activos adeptos do basquetebol Barreirense, foi imediata e legitimamente interpretada como a vontade confessa da Direcção em exercício de sentenciar de morte a próxima participação na Liga Profissional de Basquetebol.
Apesar de muitos terem manifestado incómodo, repulsa e mesmo indignação pela proposta da Direcção, o facto é que na fase inicial da referida Assembleia-Geral os associados não se pronunciaram. Decidi pedir a palavra. Ainda que habituado ao longo da minha carreira académica e profissional a intervir publicamente com alguma regularidade, a verdade é que senti a responsabilidade e a delicadeza daquele momento. Com indisfarçável nervosismo, a voz aqui e ali embargada, destaquei o papel de Manuel Lopes à frente dos destinos do clube, desde que assumira a sua presidência em Abril de 1996. Mas discordei dos seus propósitos mais recentes, quanto à vontade de aniquilar o basquetebol de alta competição. Sustentei a minha intervenção no histórico da modalidade no FCB, na pujança do seu projecto a nível dos escalões de formação, na relação das equipas de sub-20 e sub-18 com a equipa sénior, na necessidade de salvaguardar activos valiosíssimos da equipa profissional, com destaque para o atleta João Betinho Gomes.
Senti que as minhas palavras foram ouvidas com atenção mas alguma desconfiança por Manuel Lopes, pelos seus colaboradores mais próximos e por uma pequena parte dos meus consócios. Cheguei a ser alvo de alguma contestação, deselegante e arruaceira, por membros da claque Brigada Relote, mas a intervenção do Presidente da Assembleia-Geral, respeitosa e oportuna, repôs a calma e a normal continuidade dos trabalhos.


Noites de luar

Nas semanas subsequentes um grupo de históricos do basquetebol Barreirense movimentou-se com o objectivo de não permitir a concretização das intenções do Presidente da Direcção. Manuel Fernandes (Director-Técnico Nacional da Federação Portuguesa de Basquetebol, antigo atleta e treinador), Carlos Pires (Vice-Presidente da Federação Portuguesa de Basquetebol, antigo atleta, treinador e dirigente) e Francisco Cabrita (Vice-Presidente da Associação Nacional de Treinadores de Basquetebol, ex-atleta, treinador da equipa sénior no período 1993-2003), destacaram-se na vontade férrea de honrar os pergaminhos da modalidade e de lutar pela sua continuidade ao mais alto nível.
Conhecedores da minha inquietação pela situação do basquetebol sénior e pelas ‘nuvens carregadas’ que o ameaçavam, manifestaram interesse na minha colaboração, no sentido de se reflectir, perspectivar e concretizar alguma resposta alternativa, credível e sustentável. Em noites quase consecutivas, participei com esses amigos em passeios descontraídos pela zona ribeirinha da cidade. Estávamos convictos da dimensão das dificuldades emergentes. E séria e verdadeiramente preocupados com a necessidade de definir uma solução.
Carlos Pires dizia que se poderia vir a constituir “a melhor Secção de Basquetebol dos últimos vinte anos”. Francisco Cabrita, noutro estilo, mais retórico e irónico, sonhava com a nossa futura inserção, num prazo de dez anos, na Liga ACB. Embora ilusória, a sugestão não deixava de ter a sua graça e constituía mais um factor de mobilização e ambição. Manuel Fernandes, mais reservado e comedido, mostrava evidente preocupação e igual empenhamento na procura de soluções, apesar da sua impossibilidade de assumir qualquer tipo de protagonismo ou responsabilidade executiva (o mesmo acontecendo em relação a Carlos Pires, pelos cargos que ambos detinham na Federação Portuguesa de Basquetebol).
Eu, que a princípio considerara um erro de casting a minha presença num grupo tão distinto, lá me fui embrenhando nesse processo e passei a ser considerado parte da solução – desafio a que não pude (nem quis) fugir. Tinha a percepção de que depois da intervenção na Assembleia-Geral de 17 de Maio de 2004, contraíra novas responsabilidades entre os Barreirenses.


Repto de Manuel Lopes

Inconclusiva quanto à formação da nova equipa directiva, a Assembleia-Geral de Maio resultara no adiamento das eleições. O que, tendo em consideração a proximidade do Verão, e a necessidade de planear de forma cuidada e atempada a participação do clube na Liga Profissional de Basquetebol, significava um risco acrescido para a manutenção da modalidade no mais elevado patamar competitivo. E parecia ir ao encontro das intenções do Presidente e de outros dirigentes do FCB.
Apesar das movimentações atrás referidas, a verdade é que à data da Assembleia-Geral seguinte, 7 de Julho de 2004, não tinha sido possível dar passos concretos no sentido de se apresentar uma alternativa de Secção, ou mesmo de Direcção – solução mais radical defendida por alguns associados. Incompatibilidades de vária ordem, impeditivas da assumpção de responsabilidades directivas por parte de alguns companheiros, indefinições, legítimos receios e outras limitações, condicionaram a nossa capacidade de resposta.
Manuel Lopes reafirmara a vontade de excluir o FCB da Liga de Clubes de Basquetebol, no pressuposto de uma inviabilidade financeira, a meu ver mal demonstrada e insuficientemente explicada. Na impossibilidade de propor uma alternativa credível, o silêncio de muitos de nós foi difícil de gerir e particularmente doloroso. No final da Assembleia-Geral foi evidente um rasto de desilusão e de frustração em todos aqueles que, amantes da modalidade que alcançou mais troféus na história do clube, se sentiram impotentes para inverter o rumo dos acontecimentos.
Muitos associados tinham já abandonado o Ginásio Jacinto Nicola Covacich quando, junto à porta de saída, Carlos Pires e eu próprio, interpelámos Manuel Lopes, quase suplicando um volte-face das suas propostas e intenções. Foi então que, perante a insistência, fomos desafiados a demonstrar que, para além de boas intenções e de palavras bonitas, havia capacidade de impor outro rumo.


A força de um impulso

O repto de Manuel Lopes estava lançado. E a nossa resposta não se fez esperar. Num assomo de coerência e determinação, dissemos presente e ousámos avançar, numa cruzada que sabíamos difícil e espinhosa.
Tivemos desde logo plena consciência de que o sucesso da nossa obra apenas seria alcançável com um projecto abrangente e a mobilização de um número alargado de Barreirenses. Nesse sentido, propusemo-nos divulgar a nossa disponibilidade para preservar a identidade e a pujança do basquetebol, e preparámos em escassos dias a realização de uma reunião de adeptos da modalidade, que se realizou a 14 de Julho de 2004 no Ginásio Jacinto Nicola Covacich. A ‘Reunião dos 80’, que dirigi juntamente com Carlos Pires, Francisco Cabrita, José Almeida Fernandes e Manuel Fernandes, teve a participação activa e solidária de cerca de oito dezenas de adeptos. Foi uma noite decisiva para o futuro do basquetebol no clube. Com apelos à sobrevivência da modalidade, testemunhos de encorajamento, disponibilização de contributos e colaborações. Percebemos que todos compreenderam a gravidade da situação e concluímos que não estaríamos isolados nos nossos propósitos de dar a cara por um projecto viável, claro, participado e ambicioso.
Na sequência dessa reunião, um grupo de onze elementos reuniu-se nas instalações da Secção de Basquetebol, para definir os três associados que integrariam a ‘chapa’ directiva a apresentar por Manuel Lopes na Assembleia-Geral Eleitoral de 21 de Julho de 2004. Constituíram esse grupo: António Libório, Carlos Pires, César Seabra, Francisco Cabrita, José Almeida Fernandes, José António, José Henrique Pina, José Manuel Rodrigues, José Seixo, Luís Chucha, Manuel Fernandes e Paulo Calhau.
Convidado a integrar a Direcção do FCB, fiz depender a minha disponibilidade da aceitação concomitante de Francisco Cabrita que, após 24 horas de reflexão, respondeu afirmativamente. Maria do Rosário Pina veio a completar a lista de três elementos, aceite por Manuel Lopes sem reservas explícitas.
Paralelamente, com a valiosa participação jurídica de José Almeida Fernandes e a colaboração de Carlos Pires e de Manuel Fernandes, eu e Francisco Cabrita assinámos um Protocolo com o Presidente Manuel Lopes. Protocolo que consagrava uma autonomia – administrativa, financeira e desportiva – que a futura Secção de Basquetebol entendia como condição indispensável para o estabelecimento de uma plataforma de entendimento com Manuel Lopes.

[Extracto do Capítulo II - Servir
Livro PROVA DeVIDA - Estórias e memórias do meu Barreirense]
(continua)