terça-feira, outubro 14, 2008

Memória Barreirense (VII)



Na bancada

Há quem assista aos espectáculos desportivos de forma tranquila, com grande contenção, sem paixão. Não sou assim. Nunca fui assim. Bem pelo contrário! Sempre vibrante nos palcos desportivos. No apoio à minha equipa. E, por vezes, no assobio e na vaia do adversário. Confesso que me excedi algumas vezes. E dirigi insultos e impropérios a atletas, treinadores e dirigentes de equipas adversárias. Mas sobretudo contra árbitros que, sobejas vezes, me pareceram tendenciosos e injustos.
Em Dezembro de 2001, presenciei dois jogos da Liga ACB [Liga Profissional de Espanha, considerada unanimemente a mais competitiva da Europa]: Cáceres-Estudiantes de Madrid e Caja San Fernando-Tau Vitoria. Assisti a grandes jogos, da mais forte liga europeia de basquetebol, em pavilhões de grande qualidade, com assistências enormes: 3.000 espectadores em Cáceres e 7.100 em Sevilha. O público manifestou-se extraordinário no apoio às suas cores, mas muito frenético e invulgarmente pressionante em relação às equipas de arbitragem. “Hijo de p…”, e algumas outras, foram expressões que ouvi repetidamente dirigidas aos ‘sopradores’. Sangue latino, pensei…
Em Agosto último estive em França, onde assisti ao Torneio de Paris de Basquetebol, com a participação da Selecções de Portugal, França, Rússia e República Checa. No Pavilhão Pierre de Coubertin, encontrei um público gaulês conhecedor da modalidade, muito apaixonado pela sua Selecção, mas disciplinado e com invulgar desportivismo. As fantasias das suas estrelas nacionais, Tony Parker, Boris Diaw e outras, mereceram um fervoroso aplauso, mas o reconhecimento do talento adversário foi também expresso amiúde para a arte de Andrey Kirilenko, Jiri Welsh e outros intérpretes do espectáculo.
Um ano antes, assistira em Madrid a um torneio preparatório do Campeonato do Mundo que se realizou no Japão e que culminou na vitória da Espanha. Perante 11.000 espectadores, vi Selecções da maior qualidade: Espanha, Argentina, Lituânia e Polónia. E atletas de eleição: Pau Gasol, Manu Ginobili e tantos outros. Mas a atitude dos espectadores espanhóis foi diferente dos gauleses: mais quente para os seus seleccionados, mais fria para com os adversários.
A passagem pelo dirigismo desportivo obrigou-me a outra contenção, a outra postura. Para transmitir um bom exemplo aos diversos grupos de trabalho. E para que o clube jamais fosse penalizado por qualquer atitude mais indisciplinada ou irreflectida. Regressado ao estatuto anterior de ‘desportista de bancada’, voltei a sentir-me mais liberto de constrangimentos verbais, que agora, embora de forma mais comedida, continuo a soltar, de quando em vez.

O vilão

O fenómeno da corrupção desportiva existe há muito tempo. Em Portugal e por toda a parte. Antigo e globalizado, ele representa uma perversidade ignóbil. Distorce a verdade desportiva. Persegue e mina grande número de modalidades, com o futebol à cabeça. Envolve vultuosos interesses financeiros, empresariais e políticos. Ocorre maioritariamente nos contextos competitivos mais altos, mas não lhes é exclusivo.
A teia de interesses e cumplicidades instalada terá provavelmente atingido em Portugal uma dimensão tal que apenas alguns conhecerão na sua plenitude. Mas muitos calam, e pelo silêncio, comprometem o necessário desmascaramento da corrupção e a adequada punição dos seus responsáveis e promotores.
O combate à corrupção é um processo difícil. Mas imprescindível. É preciso muita coragem e determinação para enfrentar o Polvo. Uns, como Rui Santos (Estádio de Choque, A Esfera dos Livros, 2007) ficam-se pelo disparo de alguma pólvora seca. Marinho Neves, mais corajoso e consequente, lançou algumas pedradas, certeiras e violentas, no charco em que se movimenta boa parte do desporto em Portugal, nomeadamente o futebol. A leitura de Golpe de Estádio (Terramar, 3ª edição, 2007) foi uma agradável surpresa, que partilhei com os leitores de Rostos, em 7 de Fevereiro de 2007:

Dez anos depois
Abril de 1996: a editora Terramar dá à estampa a primeira edição de Golpe de Estádio, autoria do jornalista Marinho Neves. Não recordo com a devida nitidez o impacto que a obra teve à época, mas é do domínio público que o jornalista pagou, de forma diversa, a coragem da investigação então publicada.
Janeiro de 2007: agora que o país volta a acreditar no desenrolar eficaz e consequente do processo Apito Dourado [provável julgamento e eventual condenação dos mais destacados obreiros da corrupção desportiva no futebol português] surge mais uma edição, com um texto que reproduz na íntegra a publicação inaugural. A esse propósito, Marinho Neves, explica na página inaugural, e em jeito de explicação, que “se escrevesse este livro em 2006 e não em 1996, creio que não mudaria uma vírgula, porque tudo está exactamente na mesma”.
O que está então imutável no futebol português?
A fazer fé na investigação do autor, coisa grande e muito séria. A corrupção activa e passiva de árbitros, por valores monetários que me surpreenderam pela sua grandeza. A manipulação de resultados, decisiva para a obtenção de títulos, fugas à despromoção/subidas de escalão. A chantagem, envolvendo os mais diversos agentes da modalidade. O tráfico de influências, na arbitragem, no dirigismo associativo e federativo, nos jornais. A lavagem de dinheiro, pelo mundo da droga, do jogo, da prostituição e do tráfico de mulheres.
A ‘organização’ que Marinho Neves pretende desmascarar tem cor e tem rostos. Tem estratégia, cumplicidades, dependências. E, já agora, resultados.
Na contracapa pode ler-se que “é certo que neste livro, tudo é ficção... mas ao mesmo tempo, tudo é verdade”. João Seminário, Tony Balboa, Zé Chapeiro, Albano Pinto, Carlos Fortes, José Vigário, Quim Pereira e alguns outros, são personagens que nos sugerem e recordam, com extrema facilidade e invulgar nitidez, alguns dos protagonistas mais tenebrosos do mundo bafiento e mafioso do nosso futebol.
Golpe de Estádio lê-se de um só fôlego. Não é um exemplo de escrita talentosa. Mas é um contributo sério e indispensável. Para a limpeza das ervas daninhas. Para a erradicação dos corruptos. Para a reposição da verdade desportiva. Para a dignificação do Futebol.
Obrigado, Marinho Neves!
Coragem, Maria José Morgado!

Em 1 de Novembro último, assisti no cinema Londres – onde em 1971 presenciara o sublime Laranja Mecânica de Stanley Kubric – à estreia de Corrupção, baseado no livro Eu, Carolina da ex-companheira de Jorge Nuno Pinto da Costa, Presidente do FC Porto.
Não lera o livro, embora já conhecesse os seus contornos, uma vez que muitas das suas mensagens principais haviam sido, à data do seu lançamento, amplamente divulgadas pela generalidade da imprensa. E constatei enorme similitude com muitas das alusões efectuadas, mais de dez anos antes, por Marinho Neves. A mesma trama de interesses, idênticos protagonistas. Curioso…

[Extracto do Capítulo I - Nascer e Crescer
Livro PROVA DeVIDA - Estórias e memórias do meu Barreirense]
(continua)