domingo, outubro 12, 2008

Memória Barreirense (VI)



Década de ouro

Os anos 50 foram férteis em bons resultados, troféus e outros momentos históricos para o basquetebol do FCB. Para além dos 2 títulos nacionais consecutivos na categoria sénior (1956/1957 e 1957/1958), fomos vice-campeões em 1958/1959 (com a mesma pontuação da Académica de Coimbra). Conquistámos a Taça de Portugal nas épocas de 1956/1957 e 1959/1960 (48-42 contra o Benfica), fomos finalistas vencidos em 1957/1958 (derrota 46-32 diante da Associação Académica de Coimbra) e semi-finalistas nas temporadas de 1954/1955 e 1958/1959). E averbámos 4 títulos nacionais consecutivos de Juniores, entre 1953 e 1957 (sobre a Associação Académica de Coimbra por três vezes e sobre o Vasco da Gama).
Foi a década da inauguração do Ginásio-Sede (20 de Maio de 1956), de duas inesquecíveis participações na Taça dos Campeões Europeus de Basquetebol (1957/1958 e 1958/1959), das internacionalizações de Albino Macedo, Eduardo Nunes, Jorge Silva, José Macedo, José Valente, José Vicente e Manuel Ferreira e... do jogo mais estranho de sempre – a segunda-mão da final do Campeonato Nacional de Juniores de 1953/1954, assim recordada por Carlos Silva Pais, no Jornal do Barrreiro de 31 de Outubro de 2003:

Na primeira-mão, o Barreirense perdeu em Coimbra por 42-46. O segundo “tumultuoso” encontro teve lugar no campo de areia batida, terreno que entretanto desapareceu debaixo da bancada sul do estádio D. Manuel de Mello. A minuto e meio do final a atabalhoada partida estava empatada a 26 pontos. O empate parecia servir ao Barreirense, esperançado em recuperar no prolongamento os quatro pontos de atraso de Coimbra. Mas deu-se um golpe de teatro... Por indicação do seu banco, um jogador estudante enfiou a bola no seu próprio cesto (...). Foi a estupefacção geral...
Os atónitos barreirenses reclamaram, mas os dois pontos eram válidos. Os da Académica ficaram obviamente de posse da bola e começaram a gastar segundos [não havia, à época, limite de tempo para lançar ao cesto]. Em luta homem a homem os rubro-brancos conseguiram, porém, apossar-se da bola. Mas que fazer com ela? Metê-la no cesto adversário (igualando a diferença da primeira mão) ou introduzi-la no próprio cesto (igualando o marcador e obrigando assim a prolongamento)? Era o pandemónio, todos vociferavam...
Veio a ordem de Albino Macedo, treinador do F.C.B, aconselhado por Martiniano Domingues... Marque-se no próprio cesto!...
Assistiu-se então aos momentos mais “surrealistas” vividos numa partida de basquete... Os rapazes da Académica puseram-se a defender o cesto do Barreirense (!), e os do Barreirense faziam tudo para meter o esférico nesse mesmo cesto (!). O nervosismo dentro e fora do rectângulo subiu ao paroxismo. Por fim, o F.C.B. conseguiu marcar os dois pontos contra si próprio (!), no último segundo, fazendo o 28-28. (...)
O subsequente prolongamento chegou ao fim com 6-0 para o Barreirense (cinco pontos do Zé Vicente), que assim conquistou o título nacional de juniores. Sucedeu em 10 de Julho de 1955, a partida de basquete mais louca, mais chanfrada que imaginar se possa.

Futebol de primeira

Nos anos 50, os adeptos e associados do FCB habituaram-se a presenciar ‘jogos de primeira’ no Campo D. Manuel de Mello. Com efeito, proeza jamais repetida em qualquer outro decénio, o clube participou 8 épocas consecutivas no escalão máximo, com destaque para o 5º lugar de 1952/1953, a 6ª posição de 1955/1956 e o 7º posto de 1957/1958.
Foram anos de afirmação de grandes talentos como Francisco Silva, Ricardo Vale e Luís Vasques. E de outros, com sucesso acrescido, que tiveram a honra de envergar a camisola das quinas, enquanto atletas do FCB, como foram os casos de João Pireza, João Silva Faia, José Augusto, Pedro Pireza, Raul Jorge e Raul Pireza.
O FCB foi semi-finalista da Taça de Portugal por três vezes (temporadas de 1952/1953, 1956/1957 e 1957/1958), caindo sempre às mãos do Benfica, e inviabilizando a concretização de um sonho de muitos clubes: uma tarde de glória no ‘Jamor’.
Nunca presenciei qualquer partida do FCB no Estádio Nacional, obra emblemática do Estado Novo, inaugurada a 10 de Junho de 1944. Mas recordo-me bem da tarde de 25 de Maio de 1967, quando assisti naquele espectacular palco desportivo, à final da Taça dos Clubes Campeões Europeus, ganha pelo Celtic de Glasgow ao Internazionale de Milão por 2-1.

Fair play

Nasci e cresci num tempo de grande rivalidade entre o FCB e o Grupo Desportivo da CUF. Determinada por factores políticos e sociais bem identificados. As disputas entre os dois clubes – no futebol e no basquetebol – eram invariavelmente momentos de muita emoção e de alguma tensão. E, por vezes, com dureza e agressividade excessivas.
Fui percebendo, cada vez melhor, a história e a identidade de ambos. E fui gostando, cada vez mais, do FCB. Vencer os ‘ratos brancos’ era motivo de alegria redobrada e, para os politicamente mais conscientes, um momento libertador, em que as gargantas se soltavam com uma raiva enorme – que o ridículo e tenebroso Sargento Reis e outros esbirros do poder totalitário que nos oprimia, não conseguiam, ainda que transitoriamente, conter.

Presenciei e tomei conhecimento, por testemunhos orais e escritos, de manifestações extraordinárias de companheirismo e fair play entre adeptos, dirigentes, atletas, treinadores, e clubes. Que adicionam grandeza, sensibilidade e beleza ao Desporto. Na edição do Jornal do Barreiro de 6 de Agosto de 1953, Alfredo Zarcos descreveu um episódio verdadeiramente extraordinário, decorrido no Barreiro num FCB-FC Porto, para o Campeonato Nacional de Basquetebol da I Divisão:

Assinale-se ainda, com muito júbilo, a presença inesperada, quase a meio da partida, de Martiniano Domingues, o dedicado orientador técnico do Barreirense, que pertinaz doença tem mantido afastado. Ao dar pela sua presença, o público dispensou-lhe calorosa ovação e a partida foi suspensa um minuto para que Martiniano, visivelmente comovido, recebesse as felicitações de todos os jogadores em campo.

Em 9 de Maio de 1957 Alfredo Zarcos, na sua crónica semanal Carroucel, no Jornal do Barreiro, escreveu:

Ocorre-nos registar aqui, dois casos de boa amizade desportiva recentemente verificados em curto espaço de tempo, entre desportistas setubalenses e barreirenses.
O primeiro aconteceu no Porto. Na capital do norte estavam as equipas de basquetebol do Barreirense para defrontar o Vasco da Gama, em partida do campeonato nacional, e a turma de futebol do Vitória, para jogar com o Leixões, em desafio da taça. No sábado à noite, uma noite chuvosa e desagradável, os futebolistas setubalenses foram ao Parque das Camélias assistir ao jogo dos barreirenses, apesar do mau tempo, não arredaram pé, a torcerem pela equipa da sua região. O facto sensibilizou jogadores e dirigentes do Barreirense que ao regressarem, apressaram-se a manifestar por ofício enviado à Direcção do Vitória, o seu agradecimento aos futebolistas sadinos. (…)
Foi há dias, em Lisboa, no Pavilhão dos Desportos. Incluído na mesma organização, jogavam em basquetebol, o Vitória com o Universitário e depois, o Barreirense com o Benfica. Elevadíssimo número de barreirenses acompanharam a turma local, e ao chegarem ao Pavilhão actuavam já universitários e setubalenses em renhida partida, cujo vencedor era uma incógnita absoluta. Pois ver toda aquela falange de entusiastas a gritar pelo Vitória, foi obra de um momento. E de tal forma esses incitamentos foram calorosos, que a equipa setubalense, sentindo-se tão inesperadamente apoiada, galvanizou-se, parecia outra, e conquistou um belo triunfo, por entre os aplausos quentes da gente do Barreiro. Depois, os basquetebolistas do Vitória retribuíram com uma gentileza. Não saíram do rectângulo e abriram alas, fazendo guarda de honra aos jogadores do Barreirense, que a seguir entraram para defrontar o Benfica.
Apraz-nos registar assinalar estas duas manifestações de boa camaradagem desportiva entre atletas e associados dos dois categorizados clubes da nossa região. Acima da pura rivalidade local, pairou mais alto, a confraternização e o brio regionalista.

Em dois anos consecutivos, basquetebolistas do FCB tiveram acidentes em Ovar. Na temporada de 2003/2004, o ‘gigante’ sérvio Dusan Macura assustou todos os presentes, após brutal queda. Verificaram-se manifestações de solidariedade da parte de atletas, treinadores, dirigentes, corpo clínico e público de Ovar. O pronto agradecimento público pela Direcção do FCB foi o testemunho justo e oportuno do nosso clube. Na época anterior, em 12 de Dezembro de 2002, presenciei idêntica manifestação de cordialidade e elevação por parte do público de Ovar. Ian Stanback, extremo-poste luso-americano, sofreu uma queda aparatosa. O Pavilhão da Ovarense ficou num silêncio absoluto, apenas interrompido quando o valoroso atleta se levantou e manifestou ter saído incólume de tão alarmante acidente. Todo o público se manifestou com palmas, para regozijo do Ian e enorme alívio da sua esposa que assistia ao jogo bem próximo de mim, com a companheira sueca do norte-americano David Kruse.

Mas também testemunhei e conheci outros episódios de direcção contrária.
Em 1959, o FC Porto não acedeu a um pedido de alteração da data da final do Campeonato Nacional de Infantis de Basquetebol, formulado pelo outro finalista, o FCB. Alfredo Zarcos, não conteve a sua indignação e, no Jornal do Barreiro de 2 de Julho, escreveu:

Porque o Barreirense tinha alguns dos seus jovens jogadores em pleno período de exames, o clube do Barreiro solicitou da Federação o adiamento da final do Campeonato Nacional de Infantis, que no domingo devia ter disputado com o Porto, na Figueira da Foz.
Consultado o clube portuense, este recusou-se ao adiamento da final, e assim, por impossibilidade de comparência do Barreirense, o Porto ficou campeão.
Foi contudo um campeonato ganho sem brilho, obscurecido como ficou com uma falta de desportivismo para com um adversário, momentaneamente impossibilitado de defender a sua posição de finalista.
A eterna ambição de ganhar títulos, seja porque processo for.

Em 27 de Abril de 1969 assisti no Estádio do Bonfim, em Setúbal, a um dos momentos que ainda hoje me desperta sentimentos de estranheza e indignação. A Federação Portuguesa de Futebol entendera abandonar a cidade do Liz para disputa da final do Campeonato Nacional da II Divisão, disputada nesse ano entre o FCB e o Boavista. Desde o início do jogo, uma parte significativa de adeptos sadinos, localizados na bancada central, onde me encontrava, optou por apoiar a equipa nortenha de forma ostensiva, perante a incredulidade dos Barreirenses ali presentes. Muito jovem, à beira de completar 12 anos, entendi como altamente deplorável aquele comportamento dos ‘vitorianos’. Hoje, ainda que passadas quase quatro décadas, confesso que o ressentimento continua, embora saiba reconhecer que a atitude desses adeptos não vinculou, obviamente, o todo dos Setubalenses, nomeadamente os seus dirigentes que, como vimos, foram protagonistas em outros momentos da história dos dois clubes, de manifestações de inegável colaboração e solidariedade. Para a história ficou um empate a três golos (após prolongamento) e o adiamento da atribuição do título para 4 de Maio, desta feita no Estádio Municipal de Coimbra, onde sob a orientação de Manuel de Oliveira, o FCB venceu por 2-1 e conquistou o 6º título de Campeão Nacional da II Divisão. Não assisti a este jogo decisivo, mas à noite, no Ginásio-Sede, juntei-me aos muitos adeptos que receberam mais uma vez de forma triunfal, a comitiva vitoriosa, encabeçada pelo Presidente Clarimundo Pereira. No dia seguinte, sob a pena de Cruz dos Santos, A Bola destacava: “Barreirense Campeão Nacional da segunda divisão – sexto título da história de um clube célebre”.

[Extracto do Capítulo I - Nascer e Crescer
Livro PROVA DeVIDA - Estórias e memórias do meu Barreirense]
(continua)