segunda-feira, outubro 06, 2008

Memória Barreirense (IV)



Tal pai, tal filho

Foi na Rua Júlio Dinis que, na madrugada de 13 de Maio, saltei do ventre de minha mãe. Algumas horas depois, o meu pai depositou, na Secretaria do Ginásio-Sede, a minha ficha de inscrição como novel associado do FCB. Foi-me atribuído o número 3594. Ao final da tarde de 21 de Julho de 1988, 31 anos depois, reproduzi em moldes idênticos, a actuação de meu pai. E o Ricardo, com menos de duas horas de vida, já era – com alguma admiração do Sr. Barbas, funcionário da Secretaria – sócio do FCB. Inscrito primeiro como Ricardo Jorge, uma vez que fora esse o nome próprio inicialmente escolhido – em memória do investigador e médico português. Nasci Barreirense! Nascemos Barreirenses!
Passados 50 anos, a fidelidade e longevidade associativas, tornaram-me o sócio nº 315, num clube com cerca de 5.000 filiados, e cuja numeração é revista, por imposição estatutária, a cada 5 anos.
Porque ganhamos afecto por um clube? Porque aderimos a um clube?
A propósito da sua simpatia sportinguista, Eduardo Prado Coelho escreveu a 10 de Agosto de 2005 no Público: “Não consigo descobrir se se trata de um imperativo do destino, se de uma decisão racional (mas que racionalidade poderá existir aqui?)”. De facto, as razões que nos levam a abraçar uma simpatia clubista, uma paixão clubista, ou até um fanatismo clubista, são de natureza muito diversa. Umas vezes mais racionais e previsíveis, outras com aleatoriedade e circunstancialismos muito peculiares. No meu caso, e no do Ricardo, é evidente que houve uma importância clara e decisiva do ambiente familiar, todo ele simpatizante e afecto ao FCB. Será essa ligação tão precoce uma forma coerciva e constrangedora de opção individual? Não creio!
Além de visceralmente Barreirense confesso que aprendi a gostar do Benfica, desde tenra idade. Eusébio, Coluna e José Augusto foram ídolos da minha infância, referências daquele clube, e também da Selecção Nacional que no Mundial de Inglaterra (1966) nos deixou incrédulos e maravilhados. Mas essa simpatia, que não cresceu com o decorrer dos anos, foi sempre insuficiente para me aliciar para uma segunda filiação associativa.

Associativismo

Em entrevista ao Expresso de 20 de Outubro de 2007, Miguel Sousa Tavares referiu que o Estado Novo “não foi a mais sanguinária das ditaduras. Não eram fuziladas pessoas. Mas do ponto de vista cultural e social, nada foi mais retrógrado”.
Apesar da política salazarista – antidemocrática, repressiva e obscurantista – o Barreiro foi-se impondo e afirmando, de forma corajosa e enérgica, como uma terra rica e fecunda em termos de Associativismo. No desporto, destacavam-se na década de 50, clubes como o FCB, Grupo Desportivo da Cuf, Luso Futebol Clube, Clube Naval Barreirense, Galitos Futebol Clube, Grupo Desportivo do Barreiro e Grupo Desportivo dos Ferroviários. Colectividades históricas como a Sociedade de Instrução e Recreio Barreirense “Os Penicheiros”, Sociedade Democrática União Barreirense “Os Franceses”, Clube Dramático e Recreativo “Os Leças”, Clube 22 de Novembro, Grupo Dramático Instrução e Recreio 31 de Janeiro “Os Celtas”, Sociedade Filarmónica Agrícola Lavradiense, Grupo Recreativo da Quinta da Lomba, Grupo Recreativo União de Palhais, Sociedade Filarmónica União Agrícola 1º de Dezembro, cumpriam um papel de relevo em áreas importantes e diversificadas do lazer e da cultura popular. A Associação Académica do Barreiro e o Cine Clube do Barreiro, foram espaços de cultura, debate de ideias, afirmação cívica e luta pela democracia.
Muitos cidadãos, das mais variadas condições sociais, credos religiosos e ideologias políticas, encontraram aí – Clubes, Colectividades, Associações, Cooperativas – espaços de diálogo e de liberdade. Exerceram Cidadania. Dignificaram o Barreiro.

A melhoria da situação económica e de bem-estar de uma parcela significativa das famílias portuguesas, registada nas últimas duas décadas, foi claramente decorrente da adesão à Comunidade Europeia em 1985. E apenas possível pela Revolução de Abril, que nos devolveu a Liberdade e a Democracia, prolongadamente postergadas ao longo de quase 50 anos.
A democratização da prática desportiva foi uma realidade, acompanhada pela melhoria quantitativa e qualitativa de quadros na área da Motricidade Humana e Desporto, e pela renovação e expansão das instalações desportivas. Mais recentemente, evoluiu-se para novas e diversificadas formas de organização. Nomeadamente a nível do desporto profissional, com a criação de Sociedades Anónimas Desportivas (S.A.D.).
Mas, com acesso a novos e diversificados bens de consumo, materiais e culturais, os portugueses têm hoje uma multiplicidade de interesses e de formas de ocupação dos seus tempos de lazer, que é claramente mais rica e plural que a outrora verificada. O associativismo desportivo tem sido de algum modo influenciado e prejudicado por essa evolução da sociedade portuguesa. Sobretudo nos clubes de menor dimensão, a esmagadora maioria. Por isso, não é fácil encontrar dirigentes desportivos – sérios, competentes e dedicados – disponíveis para assumir responsabilidades e enfrentar dificuldades económico-financeiras de dimensão crescente.
Um estudo recente da Marktest, parcialmente publicado na edição de 9 de Agosto de 2007 de A Bola, revelou que “em 10 anos houve um decréscimo de cerca de 26 por cento de sócios de clubes desportivos”. Em 2006 foram contabilizados “1332 mil portugueses que diziam ser sócios de clubes desportivos, ou seja 16 por cento do universo composto pelos residentes no continente a partir dos 15 anos, inclusive”, com uma relação de 3 para 1 entre os dois sexos (24.7% de homens e 8.1% de mulheres). Com crónicas dificuldades estruturais, agravadas pela recente venda de património, e com o futebol em queda de competitividade, as perspectivas de reforço associativo no FCB não parecem muito optimistas. Mas…

Ricos e pobres

Vítor Serpa, director de A Bola, escreveu em editorial de 27 de Janeiro de 2005: “A mística vem da história, atravessa gerações e projecta-se para o futuro. Acompanha os tempos, as mudanças, as novidades da moda. Tem o peso da alma, a grandeza das utopias, a intensidade do sagrado”.
O FCB dos anos 50 – como o da fundação e o da actualidade – era um clube pobre em bens materiais, com permanentes dificuldades de tesouraria. Mas com uma mística enorme. A forma lenta mas obstinada como o Campo D. Manuel de Mello foi sofrendo sucessivas beneficiações e a epopeia da construção do Ginásio-Sede, constituíram exemplos de realizações erguidas com o suor e a perseverança de muitos Barreirenses. Num processo de afirmação de identidade e de amor clubista, que não pode ser ignorado e que deve ser transmitido às actuais e futuras gerações de adeptos e associados.
Na acta da primeira Reunião de Direcção que se realizou após o meu nascimento, e onde fui formalmente admitido como sócio, consta a aprovação da aquisição de uma peça de roupa interior solicitada por um dos mais valorosos atletas de sempre do FCB. E a equipa de futebol que a 19 de Maio de 1957 se deslocou ao Estádio da Luz para a segunda mão das meias-finais da Taça de Portugal, foi de barco até Lisboa onde, no Terreiro do Paço, tinha à sua espera um autocarro fretado para a levar à ‘Luz’. Solução mais económica que um percurso rodoviário Barreiro-Lisboa (via Vila Franca de Xira). Era, como se conclui destes dois episódios, um tempo de escassez material, mas também de enorme contenção e máximo rigor. A sobrevivência do clube assim o exigia. No passado, como no presente…

[Extracto do Capítulo I - Nascer e Crescer
Livro PROVA DeVIDA - Estórias e memórias do meu Barreirense]
(continua)