sábado, novembro 08, 2008

Memória Barreirense (XIX)


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Tragédia

Na tarde de 8 de Abril de 1972, assisti com o meu pai e um grupo de amigos, à transmissão televisiva do União de Tomar-FCB, a contar para o Campeonato Nacional da I Divisão. Exibição descolorida do FCB e arbitragem tendenciosa. Derrota do FCB por 4-1.
Apesar do desalento, à saída da casa de Diamantino Carvalho (ex-futebolista do FCB e à data Secretário-Geral da Associação de Futebol de Setúbal e correspondente de A Bola no Barreiro) alguns dos presentes combinaram um lanche em Palmela. Por três vezes entrei pela porta traseira do lado direito na viatura de Diamantino Carvalho. Outras tantas meu pai me retirou, apesar da insistência em sentido contrário dos amigos. Um gravíssimo acidente de viação provocou a morte imediata de José Luís Duarte Pinto, que viera a ocupar o meu lugar. Diamantino Carvalho não resistiu aos ferimentos, e morreu dias depois. Edgar da Costa Nunes, João Luís dos Santos Costa e António Balseiro Fragata sobreviveram.

No ano anterior estivera em casa de José Luís Duarte Pinto, que convidara um grupo de amigos para comemorar o regresso de África do filho Luís Pinto, basquetebolista do FCB e pai de Pedro Pinto, grande promessa do basquetebol Barreirense.
Nessa noite vi fotos horríveis da Guerra. Corpos despedaçados. Porta-chaves, com orelhas do inimigo abatido. Cabeças penduradas em estacas de madeira. Cenas atrozes. Destinos que os militares portugueses (e populações civis) também sofreram às mãos dos Movimentos Africanos de Libertação Nacional.
Tinha 14 anos. Mas lembro-me muito bem da repercussão que essas imagens tiveram na minha apreciação da Guerra Colonial e que me ajudaram a formular e a amadurecer, um pouco mais tarde, a ideia de, quando chegado o momento, poder decidir em consciência e não vir a integrar as forças armadas portuguesas em guerra tão injusta e perniciosa.
O notável trabalho A Guerra do jornalista Joaquim Furtado, recentemente transmitido pela RTP, fez-me reviver aquelas imagens infernais, que tanto me impressionaram à época, e que não podem ser ignoradas nem deturpadas, no processo lento e por vezes doloroso de construção da História da Guerra Colonial.



Capa e batina

A deslocação da Associação Académica de Coimbra ao Barreiro, como aliás à generalidade dos estádios, acompanhava-se sempre de um ambiente especial, independentemente do desejo de vitória dos contendores em disputa. Era, ainda, a ‘equipa dos estudantes’. Um clube com uma mística muito peculiar. O segundo clube de muitos portugueses. Que soubera, corajosamente, afrontar Salazar na final da Taça de Portugal, disputada no Estádio do Jamor em 1969.
Em 24 de Maio de 1972 vivi algo de diferente. Ainda na primeira volta do Campeonato Nacional da I Divisão, a Académica protestara o jogo disputado no ‘Manuel de Mello’. Um acórdão tardio e absurdo do Conselho Superior de Justiça da Federação Portuguesa de Futebol, resultou na repetição do jogo que, disputado numa tarde de quarta-feira, não teve uma moldura humana condizente. Um golo de Câmpora determinou a derrota da Académica de Gervásio e dos irmãos Campos, e a sua decida ao escalão inferior. Lenços brancos brindaram os Conimbricenses no regresso aos balneários. A Académica impusera de forma inaceitável, como aliás a comunicação social desportiva então assinalara, a sua força nos órgãos decisores da Justiça e isso provocara natural desconforto e revolta nos Barreirenses. Sem lenço, mas com um gostinho muito especial de vingança, estive, como sempre, com os meus…
Curiosamente, quatro dias depois, o FCB foi a Coimbra disputar o último jogo do campeonato. Ambiente muito hostil. Saímos derrotados por 2-0. Sem consequências para nós…

Dois anos antes, no Barreiro e perante o mesmo adversário, assisti a um dos golos mais insólitos da minha vida.
Um golo prematuro da Académica logo no primeiro minuto da partida não esmoreceu o FCB, que igualou até ao intervalo e, na segunda parte, destronou os ‘estudantes’ com três bolas sem resposta.
Com um golo de… Bento. O guarda-redes que, vindo da Golegã, rapidamente se impôs no futebol nacional e internacional. E que na tarde de 4 de Janeiro de 1970, saído do quartel onde prestava o serviço militar obrigatório, colocou a bola dentro da baliza norte do Campo D. Manuel de Mello para gáudio dos adeptos Barreirenses e desespero de um atónito Viegas.
Cruz dos Santos (A Bola de 5 de Janeiro) relatou assim a proeza do nosso guardião:
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Golo de guarda-redes gerou abismo
Foi um golo invulgaríssimo. Depois de ter encaixado a bola, Bento bateu-a no solo e, perto do limite frontal da sua grande área, pontapeou-a com muita força na direcção do meio campo do antagonista.
O esférico foi cair na linha média da Académica e com tal força que nenhum jogador tentou disputá-lo.
Parecia que ele iria ser recolhido pelo guardião Viegas, mas este adiantou-se demais e com o toque no terreno a bola passou-lhe por cima e entrou na baliza da ‘Briosa’.
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Exemplar

Poucos meses depois, o FCB-Belenenses que presenciei em 17 de Dezembro de 1972 poderia ter acabado muito mal…
Os azuis de Belém, de Mourinho, Freitas, Quinito e Gonzalez, entraram a ‘todo o gás’ e chegaram ao intervalo com três golos averbados na baliza de Abrantes. A nossa defesa, liderada por Luís Mira, não conseguiu deter o poder ofensivo do adversário e os nossos médios e avançados, entre os quais Valter Costa, actual treinador do FCB, mostraram-se inoperantes.
O segundo golo foi muito contestado pelos jogadores e adeptos locais, por supostamente ter sido obtido na sequência de uma falta de Laurindo a Luís Mira, que o árbitro César Correia entendeu sancionar em sentido contrário. A partir desse momento, a reacção dos associados Barreirenses foi muito enérgica e, ao intervalo, no regresso aos balneários, proliferaram os insultos e foram arremessados muitos objectos. A Direcção do FCB decidiu, em reunião de emergência, não iniciar a segunda parte “decisão que é ditada pelas circunstâncias e para salvaguardar os interesses do clube”, conforme foi dito através da instalação sonora. Uma boa parte do público abandonou o Campo D. Manuel de Mello.
Em declarações a Santos Neves, de A Bola, o Presidente do FCB, Ezequiel Patrício declarou: “o jogo não prosseguirá, pois achamos que a integridade física do árbitro se encontra seriamente ameaçada, devido à sua má actuação. (…) a nossa massa associativa está praticamente fora de si e a invasão do campo poder-se-á dar, em qualquer momento. Não queremos, no D. Manuel de Mello, as cenas tristes e lamentáveis a que se tem assistido noutros campos do país, nem acarretar com as sanções que daí advenham”.
Mas ao cabo de trinta e cinco minutos de intervalo, as três equipas regressaram ao relvado e o jogo foi reatado. Foi um FCB digno e disciplinado que disputou a segunda parte. Para a história ficou um pesado resultado final (1-5). Mas para mim, e para muitos outros, foi um exemplo de desportivismo e fair play do meu clube, em condições e circunstâncias particularmente adversas.
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Carnaval em Torres

A cidade de Torres Vedras preparava já afincadamente o seu tradicional e afamado Carnaval, quando o FCB aí se deslocou para defrontar o Sport Club União Torreense.
Sob a orientação técnica de Luís Mira, almejávamos o regresso à I Divisão, objectivo que veio a ser alcançado pelo Estoril, treinado pelo polémico e carismático António Medeiros.
Abrantes, guardião titular da nossa baliza, era mais que um simples futebolista. Dirigente do Sindicato de Jogadores de Futebol, era à data um cidadão com um conjunto de preocupações em relação à sua classe, que o distinguiam pela positiva de grande parte dos seus pares. A maioria dos atletas da equipa profissional do FCB tinha uma escolaridade que não ultrapassava o 4º ano [antiga 4ª classe]. Com a colaboração de José Barbado, ilustre Barreirense e co-proprietário com Hélder Fráguas do Colégio Moderno do Barreiro, Abrantes estimulou, ajudou a conceber e a concretizar uma experiência inédita. Com efeito, mobilizou-se um conjunto de boas vontades e, o Colégio Moderno foi palco da frequência do primeiro ciclo por cerca de quinze futebolistas.
Concluído o curso liceal em 1974, inscrevera-me na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, para cumprir um sonho e desejo de criança: ser médico. Mas, na sequência da Revolução dos Cravos, a minha frequência universitária foi protelada, para cumprimento de um ano do chamado Serviço Cívico, imposto pelas autoridades educaticas governamentais. Os portugueses, depois de 48 anos de ditadura, estavam sedentos de participação cívica, mergulhados numa multiplicidade de organismos populares recém-criados, e (ainda) muito iludidos pela perspectiva de construção de uma pátria mais justa e mais próspera. Também eu aderi a causas belas e generosas.
Convidado por José Barbado – amigo de longa data de meu pai, e progenitor da Manuela Barbado, uma das maiores amigas da minha irmã – aceitei prontamente o desafio, e leccionei a disciplina de Ciências Naturais. E integrei o corpo docente, com José Barbado e os meus ex-companheiros de liceu, e ainda hoje grandes amigos, Eduardo Silva, João Mário Viana, José Manuel Sousa e Manuel Pedro.
A disponibilidade inicial da maior parte dos quinze atletas rapidamente se desvaneceu, mas três deles – José João, Serra e Carlos Mira – vieram a concluir nesse ano lectivo o primeiro ciclo liceal.
Foi, para todos nós, uma experiência inolvidável.
Para além da actividade docente acompanhámos a equipa em alguns jogos forasteiros. E fomos particularmente estimados por todo o grupo. Nesse domingo de 2 de Fevereiro de 1975, deslocámo-nos então a Torres Vedras, onde uma exibição portentosa do avançado Charouco abriu as portas a uma vitória do FCB (4-2). No final do jogo, numa manifestação sublime de fair play, os dirigentes do Torreense brindaram a comitiva Barreirense com uma magnífico churrasco, para o qual nós, os professores, fomos gentilmente convidados. Grande dia! Grande vitória! Grande lição de vida!
Em 2007, passados vinte e dois anos, voltei a Torres Vedras, ao Campo Manuel Marques. Para ver o FCB empatar e comprometer a permanência na II Divisão (terceiro escalão nacional). Destino que veio infelizmente a confirmar-se, poucas semanas depois.


[Excerto do Capítulo III - Viagens na minha terra
Livro PROVA DeVIDA - Estórias e memórias do meu Barreirense]
(continua)