quinta-feira, novembro 20, 2008

Memória Barreirense (XXIV)



Angra Património da Humanidade

Saímos da Portela pelas sete horas de sábado, 2 de Março de 2002. Eu e o Ricardo fomos os únicos acompanhantes da equipa sénior de basquetebol do FCB que, pelo segundo ano consecutivo, disputava a Liga Profissional, depois de uma época de estreia em que alcançara o 10º lugar, entre catorze participantes.
À chegada a Angra do Heroísmo, estacionámos a viatura de aluguer junto ao Centro de Turismo, para recolhermos preciosas informações acerca da Ilha Terceira. À saída do edifício cruzámo-nos com a companheira de Ian Stanback, nosso atleta e que já representara a equipa da Lusitânia, o adversário dessa noite. Cumprimentou-nos, como sempre de forma sorridente e jovial, na companhia do seu pai, também ele açoriano. Angra do Heroísmo revelou-se uma cidade bonita e hospitaleira, com um centro histórico agradável e bem preservado, mas sem o cosmopolitismo e os sinais de pujança e modernidade que presenciara na Ilha da Madeira. A visita à Praia da Vitória (repetida na manhã seguinte) e ao Algar do Carvão, reserva natural geológica, foram momentos bem agradáveis, entrecortados e recheados por uma gastronomia surpreendentemente deliciosa.
No domingo, apesar da derrota (100-90) da véspera, partimos à procura de novas emoções, mas ao início da tarde, vista e revista a pequena ilha, resolvemos ocupar algum do tempo sobejante no Estádio Municipal João Paulo II, onde a Lusitânia recebia o Benfica-B, em jogo do Campeonato Nacional de Futebol da II Divisão. Foi uma primeira parte de futebol tão lento, entediante e mal jogado que, ao intervalo, resolvemos abandonar o recinto de jogo.
No regresso ao carro, foi o grande choque! A Antena 1 da RDP noticiava a dramática paragem cardio-respiratória de Paulo Pinto, ocorrida minutos antes no jogo Aveiro Basket-Benfica, com transmissão televisiva pela SportTV. Receei o pior. O que infelizmente veio a confirmar-se pouco depois. O valoroso atleta internacional faleceu e como bem se interrogou no dia seguinte Vítor Ventura nas páginas do Record do dia seguinte: “Como é possível Deus permitir esta injustiça?”.

Paulo Pinto foi um atleta exemplar. Com enormes atributos técnicos e de um invulgar desportivismo. E um estudante de eleição, que o levou à conclusão do Curso de Medicina. Facto que eu, seu companheiro da profissão, soubera valorizar de forma muito particular. Compatibilizar a prática desportiva de alta competição com a frequência e conclusão de uma licenciatura em Medicina, só está ao alcance de alguns cidadãos dotados de invejável inteligência e perseverança.
Foram vários os atletas do FCB, sobretudo praticantes de basquetebol, que ao longo dos anos tiveram percursos académicos de relevo, conciliando, com sacrifício mas muita abnegação, o estudo com a prática da modalidade. A lista seria longa e, prudentemente, não me deterei na enunciação de todos esses exemplos, para não correr o risco de omissões tão involuntárias quão injustas. Vale a pena todavia destacar que, por exemplo, na temporada de 2006/2007, seis estudantes universitários integraram a equipa sénior de basquetebol do FCB. Também um número significativo dos treinadores (actuais ou passados) do basquetebol sénior e dos escalões de formação do nosso clube tem elevada formação académica. Ainda recentemente, António Paulo Ferreira, actual treinador da equipa sénior, concluiu as suas provas públicas de Doutoramento em Ciências do Desporto, pela Faculdade de Motricidade Humana da Universidade Técnica de Lisboa. Tive o prazer de assistir à sua brilhante prestação, que me levou a dedicar-lhe um texto, publicado em Rostos, 3 de Abril de 2007:

Carta a um Amigo
Caro António Paulo Ferreira:
Quando, no início desta década, você me viu no Pavilhão de Águas Santas, para acompanhar o nosso Barreirense numa fase final de Juniores A (sub-20) de basquetebol, perguntou-se – conforme me confidenciou mais tarde – “mas que faz este indivíduo aqui?”.
Creio que o tempo se encarregou de demonstrar-lhe, de forma segura e consistente, a razão da minha presença naqueles três dias, numa prova que não nos correu totalmente de feição (apenas porque não fomos campeões nacionais).
Posteriormente, você habituou-se a ganhar quase sempre, fruto de méritos e circunstâncias indiscutíveis, e foi campeão nacional de Cadetes (sub-14), Juniores B (sub-18) e Juniores A (sub-20). Esta época, pôde, finalmente, assumir novo e estimulante desafio, ao arcar com a grande responsabilidade de liderar tecnicamente a equipa sénior do FC Barreirense. Sem estranheza e com a naturalidade possível, perdeu mais vezes mas, sem resignação e sem álibis, defendeu sempre o seu grupo de trabalho e pôde prosseguir, sem hostilizações e constrangimentos medíocres e estéreis, que outros antes de si tiveram de suportar, um trabalho que, espero, desejo e estou convicto, vai dar outros frutos em anos vindouros.
A manhã de hoje, nasceu chuvosa e fria, tal como há 50 anos, quando foi inaugurado o nosso Ginásio-Sede, palco de tantas tardes e noites de alegria e glória, que ambos temos vivido ao longo de décadas e décadas de ‘Barreirensismo’ fervoroso, adulto e responsável. E, tal como em 20 de Maio de 1956, o sol brilhou aqui e acolá, pela tarde fora. E deu cor à sua brilhante prestação de provas públicas de Doutoramento em Ciências do Desporto, pela Faculdade de Motricidade Humana da Universidade Técnica de Lisboa, que hoje decorreu na Cruz Quebrada, localidade outrora tão relevante no basquetebol nacional.
Familiares e Amigos, Técnicos, Dirigentes e ex-Dirigentes do FC Barreirense, testemunharam ao longo de três horas, intensas e vibrantes, a excelência da sua Tese de Doutoramento Criticalidade e momentos críticos – aplicações ao jogo de Basquetebol.
A clareza, profundidade e convicção com que efectuou a apresentação do trabalho, foi o pontapé de saída (melhor dizendo: a bola ao ar) protocolar que teve depois, na sequência argumentativa dos membros do júri, presidido pela Prof. Doutora Helena Pereira (Vice-Reitora da Universidade Técnica de Lisboa), momentos de enorme destaque e excelência.
Original e inovadora na concepção, arriscada e temerária na estrutura, rigorosa e coerente na metodologia, de enorme qualidade e utilidade nas conclusões e no potencial de exportação para outros contextos de modalidades colectivas. Estas e outras adjectivações foram proferidas pelo júri, que pela exigência e sentido de responsabilidade que evidenciou, deu reforçado brilho e dignidade à sua prova final. Soube-me bem ouvir, desta vez ao vivo, as palavras serenas e alegres, inteligentes e sábias do seu orientador, o Prof. Doutor Hermínio Barreto.
No final, a aprovação unânime do júri, mais não foi do que um corolário lógico e justíssimo, de anos e anos de trabalho, difícil e exigente que, certamente com o apoio, tolerância e compreensão da sua companheira, desenvolveu com invulgar afinco e empenhamento.
No final da sua exposição derradeira, o António Paulo afirmou, se a memória me não atraiçoa: “É possível tomar boas decisões e ter insucesso. É possível tomar más decisões e ter sucesso”. Pois é, meu Amigo, você sabe, como eu sei, que decisões maioritariamente acertadas e justas conduzem de forma mais preditiva e sólida ao sucesso. O sucesso a que você aspira, merece, e continuará a alcançar, pela vida fora.
O António Paulo Ferreira está de parabéns, pelo brilhantismo e excelência da sua prestação. O Barreirense está de parabéns, por ter na sua grande e nobre família, tão ilustre associado. O Barreiro está de parabéns, pelo ‘filho’ que o representa com tanta qualidade e determinação. A Faculdade de Motricidade Humana da Universidade Técnica de Lisboa está de parabéns, pelo eminente cientista e pedagogo que alberga. O Basquetebol está de parabéns, pelo técnico que lhe reforça e consolida a substância. O Desporto está de parabéns, pelo Homem que o serve e dignifica.
Aceite, caro Amigo (Prof. Doutor) António Paulo Ferreira, um abraço sincero e desinteressado,
Paulo Calhau

A realidade do futebol nacional é substancialmente diferente. Um número muito significativo dos seus praticantes interrompe prematuramente a frequência escolar. O sonho e a ilusão de acesso ao futebol profissional – onde apenas um escasso número de atletas tem o talento e a oportunidade de ascender a uma situação económica de excelência – representam, quase sempre, uma miragem. Perigosa e nefasta. É de louvar a atenção e a exigência que alguns clubes começaram a dedicar a este problema. A experiência do Sporting, na Academia de Alcochete, tem revelado novas potencialidades. Mas parece-me que é ainda um caminho cheio de vícios e armadilhas. A ver vamos…

a
[Excerto do Capítulo III - Viagens na minha terra
Livro PROVA DeVIDA - Estórias e memórias do meu Barreirense]
(continua)