terça-feira, novembro 04, 2008

Memória Barreirense (XVII)



O caminho faz-se caminhando
(Amato Lusitano)


3 de Novembro de 1963

Sempre gostei de acompanhar o FCB, nos jogos ‘intra-muros’ e, sobretudo, nas deslocações por esse país fora. É uma sensação especial, que não consigo explicar na sua plenitude. Mas que me perpassa sempre que assisto às prestações das nossas equipas na condição de visitante.
A época de futebol começara há pouco mais de dois meses. Tinha apenas 6 anos. Mas lembro-me do episódio. Como se lembrarão muitos dos largos milhares de adeptos que encheram o ‘Manuel de Mello’. Entre os quais uma grande falange de Setubalenses que tradicionalmente acompanhava a equipa vitoriana, que nesse ano tinha, mais uma vez, atletas valiosos da estirpe de Mourinho, Jaime Graça e José Maria.
Dizem as crónicas ao jogo, que o Vitória de Setúbal [designação oficial: Vitória Futebol Clube] entrou muito forte e avassalador. Três golos na primeira parte sentenciaram qualquer veleidade do FCB.
O poste esquerdo da baliza norte mostrara já alguma instabilidade e, ao intervalo, algumas mentes mais engenhosas tentaram remediar o mal. No regresso do descanso, o defesa-central Lança, talvez pensando que daí poderia resultar uma repetição integral do jogo, deu uma ‘mãozinha’ e, diz-se que intencionalmente, derrubou o poste. Aníbal de Oliveira, árbitro da partida, não esteve pelos ajustes. Deu o jogo por concluído. Consumada a derrota por 0-3, o FCB protestou. Indeferido!
No dia seguinte, A Bola dá destaque de primeira página ao acontecimento e titula: “No Barreiro, um caso intrincado. A história invulgar de um poste partido”.
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De barco… para Lisboa

Tinha 8 anos quando, a 2 de Novembro de 1965, visitei pela primeira vez o Estádio do Sport Lisboa e Benfica, vulgarmente conhecido por Estádio da Luz. Na companhia de meu pai e de alguns seus amigos, atravessámos o Tejo, numa bonita tarde de domingo. Recordo-me do deslumbramento à chegada ao estádio, belo e majestoso. Mesmo com o terceiro anel ainda incompleto – obra que veio a ser concretizada na presidência de Fernando Martins – era já o maior estádio português.
Cerca de 30.000 espectadores presenciaram um jogo muito assimétrico em todas as suas vertentes: técnica, táctica e física. Não se verificava nesse tempo, o equilíbrio que hoje existe em termos de condições de trabalho, metodologia de treino, cuidados médicos. Os resultados desnivelados eram frequentes. E a nossa derrota (8-2) nessa jornada foi disso um (mau) exemplo.
Com Coluna, Simões e José Augusto, mas sem Eusébio, o Benfica de Bela Guttmann desbaratou a nossa linha defensiva onde na esquerda despontava Adolfo, futura aquisição das ‘águias’.
Na baliza do FCB, Bráulio cumpria a nona e última época ao seu serviço. E em 1 de Novembro de 1966, foi merecedor de uma justíssima homenagem, que decorreu no Campo D. Manuel de Mello. Amora, Oriental, CUF e FCB, quatro dos seis clubes que representou na sua carreira, associaram-se à festa, simples mas de enorme significado. Recordo-me que, alguns dias antes, na sala da Direcção, alguns Directores do FCB, entre os quais o meu pai, interrogavam-se acerca da prenda a oferecer a Bráulio. No cofre, enorme, escassos contos de réis como que se perdiam na sua imensidão. A conta bancária também era exígua. Estávamos, como quase sempre, financeiramente muito depauperados. A dificuldade resolveu-se com a oferta de um emblema de ouro do clube e eu, menino de 9 anos, tive a incumbência de entregar ao valoroso guardião uma caixa com três garrafas. Perdão: duas garrafas; já que uma das delas se partira até chegar ao relvado, onde decorreu a entrega de lembranças. Durante algum tempo, muito os amigos de meu pai se ‘meteram’ comigo, perguntando pela garrafa desaparecida… Quarenta anos depois, em Rostos de 26 de Novembro de 2006, publiquei um texto dedicado a Bráulio, meu bom e velho amigo.

De Londres ao Barreiro
Acabo de ler em A Bola que o Charlton Athletic homenageou na tarde de ontem no lendário estádio The Valley, o contributo de Jorge Costa, ex-capitão do FC Porto, que envergou a camisa vermelha do popular clube londrino durante seis meses. Mais do que o valioso relógio de prata oferecido ao actual treinador-adjunto do Braga, merece particular realce o facto de cerca de trinta mil adeptos terem homenageado de forma tão calorosa, um atleta que esteve em terras de sua Majestade por um período de tempo tão escasso.
Estamos perante um feliz episódio, exemplo da cultura desportiva que na actualidade se ‘respira’ em Inglaterra, onde os tempos sombrios do ‘hooliganismo’ e do jogo violento parecem cada vez mais distantes. Sérias, rigorosas e consequentes medidas de controlo da delinquência (dentro e fora dos estádios), foram sendo concretizadas, sobretudo depois dos trágicos acontecimentos de 29 de Maio no Heysel Stadium de Bruxelas, quando Liverpool e Juventus se preparavam para disputar a final da Taça dos Campeões Europeus, corria o ano de 1985. E o Futebol britânico recuperou o seu esplendor, com adeptos fervorosos mas disciplinados, jogadores de grande qualidade e rija têmpera, treinadores de reconhecido mérito e carácter, árbitros qualificados e incorruptos, dirigentes competentes e responsáveis. Todos são parte integrante do fenómeno Futebolístico, mas os jogadores são, e muito justamente, os seus protagonistas.
Como é diferente, neste particular, a realidade portuguesa, onde muitos dirigentes e árbitros, diletantes, mesquinhos e hipócritas (e sei lá que mais…), disputam quase todos os dias, e pelas piores razões, as primeiras páginas da comunicação social.
Mas lá com cá, longe vão os tempos em que muitos atletas faziam as suas carreiras quase exclusivamente vinculados a um só emblema e a uma só paixão clubista. Recordo, da minha infância e adolescência, os exemplos dos Barreirenses Faneca, Lança, Bráulio, Serra e Luís Mira. Em décadas pretéritas muitos outros tiveram semelhante percurso. O caso porventura mais recente, se a memória me não atraiçoa foi o de Álvaro, ex-defesa esquerdo e capitão, actual treinador-adjunto do Barreirense.
As festas de homenagem, simples na sua organização, invariavelmente frustrantes no retorno financeiro, mas profundamente genuínas no seu significado, surgiam no ocaso de uma vida desportiva feita quase sempre de muita dedicação e parca compensação monetária. Pequenito mas já iniciado nas andanças da bola, lá fui entregar ao dedicado e competente Bráulio uma das singelas prendas que um pobre mas digno Barreirense lhe pôde então oferecer, como tributo a uma carreira digna e esforçada que o longilíneo guarda-redes percorrera na vila operária.
Hoje, os plantéis mudam a velocidade estonteante, a identificação dos atletas com os adeptos é efémera e anódina, a ingratidão e o esquecimento são recorrentes. Também por isso, o exemplo de Charlton me parece interessante e paradigmático, muito belo e singular.
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Para o Barreiro de… traineira

Um ano antes da retirada de Bráulio, Paulino tinha-lhe disputado e conquistado a titularidade, e foi com a contribuição deste igualmente valoroso guarda-redes que, em 2 de Maio de 1965, assisti a uma das páginas mais belas e notáveis da nossa longa história.
Sem conhecer o sabor da derrota há doze jogos, o FCB recebia o Olhanense, no culminar do Campeonato Nacional da II Divisão - Zona Sul, temporada de 1964/1965. Com menos dois pontos que o adversário e derrotado na primeira volta no Campo Padinha por 2-1, o FCB tinha de vencer por dois golos para se sagrar campeão de zona e ascender automaticamente à I Divisão.
Na véspera da partida, A Bola dedicou-lhe uma grande reportagem nas páginas 1, 3 e 6, reveladora da expectativa que o desafio despertara no futebol português. Albino Macedo, Presidente do FCB, e o treinador espanhol Oñoro manifestaram então grande optimismo. E com toda a razão!
Apesar de muito apoiada por uma multidão de Olhanenses, que se deslocaram ao Barreiro por comboio, autocarros, carros particulares e até de traineira (!), a equipa algarvia – considerada favorita por muitos observadores – foi impotente para travar um FCB demolidor. Garrido, Vicente e Ludovico decidiram a partida com três golos sem resposta, que asseguraram a nossa subida à divisão maior.
Viveram-se momentos que jamais esquecerei. Quando do terceiro golo, Leonel Gomes, possuído por uma emoção arrebatadora, saltou para o degrau inferior da bancada central e… aterrou nos meus ombros!
No final, uma imensa multidão de Barreirenses, maioritária nos 15.000 espectadores presentes, comemorou a vitória com muito fervor. Os catorze jogadores, além do júbilo da subida de divisão, levaram para casa um prémio de 1.500 escudos [75 euros], a que tiveram igualmente direito o treinador e o massagista.
No dia seguinte, Carlos Pinhão titulava em A Bola: “Golpe de teatro na zona sul. O Barreirense ganhou a I divisão… ao sprint”.
O FCB iria marcar presença, pela 17ª vez, no Campeonato Nacional da I Divisão.


[Excerto do Capítulo III - Viagens na minha terra
Livro PROVA DeVIDA - Estórias e memórias do meu Barreirense]
(continua)